O declínio na popularidade de King coincide com uma guinada que o
afastou do ativismo que o tornara conhecido nos EUA — a campanha pelos direitos
civis no Sul do país — rumo a um movimento muito mais radical, que tinha como
alvos a guerra no Vietnã e a pobreza
por Zaid Jilani* para The
Intercept – Sociedade e Lutas por
Direitos Civis nos EUA
Foto do
título: Martin Luther King discursa para pedir o fim da guerra do Vietnã no dia
1 de setembro de 1967, em Chicago. Foto:
Charles Harrity/AP
Em 1999, uma
pesquisa do instituto Gallup
apontou as pessoas mais admiradas pelos americanos no século XX.
Madre
Teresa ficou em primeiro lugar, a pessoa mais admirada do século para 49% dos
estadunidenses; em segundo lugar, ficou o reverendo Martin Luther King, com
34%. A agência de pesquisa, porém, depois comentou que “quando vivo, King
esteve longe de ser uma unanimidade.” Destacou que, em 1966, 63% dos
americanos tinham uma visão negativa do líder do movimento pelos direitos
civis, e apenas 32% tinham uma visão positiva — uma mudança expressiva em
relação à pesquisa que havia sido feita cinco antes, quando 42% dos
norte-americanos avaliaram King positivamente, e apenas 37%, de forma negativa.
O
declínio na popularidade de King coincide com uma guinada que o afastou do
ativismo que o tornara conhecido nos EUA — a campanha pelos direitos civis no
Sul do país — rumo a um movimento muito mais radical, que tinha como alvos a guerra
no Vietnã e a pobreza.
A defesa dos direitos civis para os afro-americanos
e da paz para os vietnamitas
A Guerra
do Vietnã já preocupava King há alguns anos, e ele debateu o assunto reservadamente em
suas conversas com o presidente democrata Lyndon Johnson. À medida que o
conflito se arrastava, no entanto, King sentiu que não tinha escolha e
precisava denunciar a guerra publicamente.
Em
um discurso em abril de 1967, na
Igreja Riverside de Nova York, o líder do movimento dos direitos
civis repudiou o envolvimento dos EUA na Indochina.
“Essa
história de queimar seres humanos com napalm, de encher os lares da nossa nação
de órfãos e viúvas, de injetar o veneno do ódio nas veias de pessoas até então
humanas, de mandar de volta para casa homens que chegam do sangrento campo de
batalha fisicamente aleijados e psicologicamente abalados,
não condiz com os valores de sabedoria, justiça e amor”, ele alertava.
“Uma nação que continua, ano após ano, gastando mais dinheiro na defesa militar
do que em programas sociais está perto de sua morte espiritual”.
Muitas
pessoas próximas a King alertaram sobre
os riscos de discursar e fazer uma campanha pública contra a
guerra. Argumentavam que Johnson havia se arriscado pela comunidade
afro-americana em questões como direitos civis e bem-estar social. Condenar
publicamente a política externa de seu governo poderia causar um dano
irreparável à relação entre os ativistas negros e o presidente.
“Somos chamados a falar pelos
fracos, pelos que não têm voz, pelas vítimas da nossa nação, por
aqueles rotulados de ‘inimigos’, porque nenhum documento produzido por
mãos humanas pode tornar esses seres humanos menos que nossos irmãos.”
Em seu
discurso, King respondeu esses críticos. Classificou a guerra de “inimigo dos
pobres” e disse que o orçamento bélico estava tirando recursos de programas de
combate à pobreza. Afirmou ainda que seria hipócrita pregar a não violência
para os ativistas interno enquanto via o governo rejeitar esse princípio no
exterior. Mas seu posicionamento, em última instância, veio de uma convicção
moral pessoal e de sua devota fé cristã. “Para além do chamado de raça, nação
ou credo está a vocação de filhos e irmãos. Porque eu acredito que o Pai
está profundamente preocupado, especialmente com Seus filhos sofredores,
desamparados e excluídos, é que venho hoje falar por eles”, disse ele.
“Acredito que isso é o privilégio e o ônus daqueles dentre nós que se
consideram vinculados a alianças e lealdades maiores e mais profundas que o
nacionalismo, e que vão além dos objetivos e posicionamentos definidos pela
nossa nação. Somos chamados a falar pelos fracos, pelos que não têm voz, pelas
vítimas da nossa nação, por aqueles rotulados de ‘inimigos’, porque
nenhum documento produzido por mãos humanas pode tornar esses seres humanos
menos que nossos irmãos.”
Soldado
da cavalaria dos EUA ajuda idosa vietnamita, cansada após ter sido levada de
sua vila para um campo de refugiados (05/01/1968). Foto: Dang Van Phuoc/AP
A reação liberal
A reação
da elite liberal, que costumava elogiar King por sua campanha pelos
direitos civis, veio com toda a força que os aliados do pastor temiam.
O conselho
editorial do New York Times ridicularizou King por associar a guerra
no Vietnã aos percalços da luta pelos direitos civis e do combate à pobreza nos
Estados Unidos, afirmando que era “uma conexão simplista demais” e
que ele estava causando um “desserviço” a ambas as causas. Concluiu dizendo que
“não existem respostas simples para a guerra no Vietnã ou para a injustiça
racial neste país”. Já o Washington Post disse que King havia “se tornado menos
útil para sua causa, seu país e seu povo”. Uma charge política no
Kansas City Star retratava o movimento dos direitos civis como um garotinha
negra chorando e chamando seu pai, um bêbado Martin Luther King consumindo o
conteúdo de uma garrafa com o rótulo “Anti-Vietnã”.
“O que aquele maldito pastor
crioulo está fazendo comigo?”
No
total, 168 jornais
atacaram King no dia seguinte ao seu discurso. O presidente
Johnson cortou relações com ele. “O que aquele maldito pastor crioulo está
fazendo comigo?”, teria dito Johson
depois do discurso de Riverside. “Demos a ele a Lei dos Direitos Civis de 1964,
demos a ele a Lei de Direito ao Voto de 1965, demos a ele a guerra à pobreza. O
que mais ele quer?”
O
movimento afro-americano, preocupado com a reação de Johnson, também se
distanciou de King.
A
Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (National
Association for the Advanced of Colored People, NAACP), sob a
liderança de Roy Wilkins, se recusou fazer oposição à guerra e condenou
expressamente o esforço para associar a paz no Vietnã ao
movimento pelos direitos civis. Whitney Young, líder da Liga Urbana
Nacional, alertou que
“Johnson precisa de um consenso. Se não estivermos com ele no Vietnã, ele não
vai estar conosco nos direitos civis”. Jackie Robinson, aclamado jogador
afro-americano de basquete e defensor dos direitos civis, escreveu ao
presidente Johnson duas semanas depois do discurso de King para se
distanciar do líder do movimento: “Tenho certeza de que sua fé foi abalada
pelas manifestações contra a guerra do Vietnã, mas espero que as ações de um
indivíduo não o façam sentir, como o vice-presidente Humphrey, que a posição do
Dr. King irá prejudicar o movimento pelos direitos civis. Não seria justo com
os milhares de soldados negros que estão dando suas vidas por acreditar, na
maior parte das vezes, que nossa posição no Vietnã é justa”. Vários doadores da
Conferência da Liderança Cristã do Sul (Southern Christian Leadership
Conference, SCLC) escreveram a Luther
King anunciando que estavam retirando seu apoio.
Martin Luther King discursa para milhares de
manifestantes em frente à sede da ONU em Nova York (15/04/1967). Photo: AP
A expansão da fronteira da desobediência civil
Ao mesmo
tempo em que contrariava o establishment liberal com sua
campanha contra a Guerra do Vietnã, Luther King planejava mobilizar
manifestações de grande escala e atos de desobediência civil dirigidos não
aos seus tradicionais oponentes segregacionistas no Sul, mas aos políticos ao
norte da linha Mason Dixon [a linha imaginária que divide o Norte e o Sul dos
EUA, e que, antes da Guerra de Secessão, separava os estados escravocratas dos
demais]. King considerava que essas autoridades não estavam agindo para acabar
com a pobreza endêmica. Em agosto de 1967, ele informou à SCLC que estava
convocando os ativistas para “tumultuar” cidades do Norte com campanhas não
violentas de desobediência civil e exigir medidas de auxílio federal. Ele
disse que estava pensando em usar táticas como boicotes escolares, convocar
afro-americanos desempregados para fazer piquete em portas de fábricas e
manifestações pacíficas diante de prédios federais.
O New
York Times, um firme aliado da campanha de desobediência civil de
Luther King no Sul, ficou furioso.
Dois dias depois da mensagem de King à SCLC, o conselho editorial
classificou sua ideia de “fórmula para a discórdia”. Para o jornal,
havia uma “contradição inerente nas exortações do Dr. King para que os
negros atuem ‘de forma pacífica mas enérgica para se contrapor às operações de
uma sociedade opressora’. Ele mesmo já reconheceu que a não violência está
perdendo seu poder; a desobediência à lei em grande escala seria como uma
faísca no atual clima superaquecido, e o potencial de desastre se torna
assustador.”
Só que
King nunca foi um defensor da violência. Embora uma parte da esquerda à época e atualmente discuta
a potencial utilidade de métodos violentos, King passou boa parte do final
da sua vida tentando evitar os protestos e ataques violentos que tanto
preocupavam o Times. Em fevereiro de 1968, durante uma viagem ao Alabama,
ele chegou a alertar que o aumento das manifestações violentas poderia levar a
uma “tomada de poder por
parte da direita“. Ele apontava as pretensões presidenciais do
segregacionista George Wallace, e dizia que
“toda vez que uma manifestação violenta acontece, isso ajuda George Wallace”.
Ao ameaçar levar os protestos contra a pobreza até a porta das Convenções
Nacionais de Democratas e Republicanos, ele descreveu a
não violência como uma espécie de caminho do meio entre aceitação e violência.
“Precisamos de uma alternativa tanto para a violência e quanto para súplicas
tímidas”, disse ele.
No mesmo
ano, ele lançou a Campanha
dos Pobres, com o objetivo de oferecer bons trabalhos, moradia e um padrão
decente de vida a todos os norte-americanos. Mais de 40 anos antes do movimento
“Occupy” tomar as ruas de Nova York e de outras cidades pelo mundo, numa
tentativa de ocupar espaço para protestar contra a desigualdade, King propôs
montar um enorme acampamento em Washington D.C. para exigir providências contra
a pobreza. Ele foi assassinado durante uma campanha para
organizar funcionários do setor de limpeza no Tennesse, em abril
daquele ano, antes que pudesse realizar o acampamento. Sua viúva
Coretta Scott King e outro líder do movimento dos direitos humanos, Ralph David
Abernathy, seguiram adiante com
o plano de criar o que denominaram Cidade da Ressurreição.
O
acampamento durou seis semanas até
que a polícia se mobilizou para fechá-lo e despejar seus habitantes,
invocando alguns atos isolados de vandalismo como justificativa. Andrew
Young, na época um jovem líder do movimento dos direitos civis, que
viria a ser embaixador dos EUA na ONU no governo Jimmy Carter e prefeito de
Atlanta, ficou horrorizado. Disse que a remoção do acampamento foi pior que a
violência policial que ele via no Sul. “Foi pior do que qualquer coisa que eu
já tenha visto no Mississipi ou no Alabama”, declarou.
“Você não joga gás lacrimogêneo numa cidade inteira só porque dois ou três
vândalos estão atirando pedras.”
Depois do
assassinato de Luther King, o clima mudou rapidamente. O presidente Johnson,
que havia cortado toda e qualquer relação e teria xingado King de
“maldito pastor crioulo”, emitiu uma declaração dizendo que “o coração da
América está pesado, o espírito da América chora“, logo após
a morte do ativista. O governador segregacionista da Georgia, Lester
Maddox, crítico frequente de Luther King, até autorizou,
não sem alguma resistência, que a bandeira da Georgia fosse hasteada a meio
mastro. Bob Kennedy, que certa vez dera autorização para
grampearem os telefones de King, compareceu ao
funeral.
“Ele dedicou sua vida aos
pobres do mundo — aos lixeiros de Memphis e aos camponeses do Vietnã.”
A maior
preocupação da esposa de King não era com a imagem de seu marido, mas sim com
seu legado. Protestos violentos sacudiram várias grandes cidades americanas na
sequência do assassinato, e ela temeu que a não violência que ele pregava se
perdesse nas cinzas.
No domingo seguinte
ao assassinato, ao falar na Igreja Batista Ebenezer em Atlanta, ela implorou
para que o movimento continuasse a agir como o próprio Luther King agiria pelas
causas em que acreditava:
Nossa
preocupação agora é que o trabalho dele não morra. Ele dedicou sua vida aos
pobres do mundo — aos lixeiros de Memphis e aos camponeses do Vietnã. Nada o
magoava mais do que quando os homens não se esforçavam para resolver seus
problemas sem apelar para a violência. Ele dedicou a vida a buscar uma forma de
ação superior, mais eficaz, uma forma criativa, e não destrutiva.
Queremos
seguir em busca dessa forma, e espero que vocês que o amavam e admiravam se
juntem a nós para realizar esse sonho.
No dia em
que os negros e oprimidos forem realmente livres, no dia em que a pobreza
for eliminada, no dia em que não houver mais guerras, nesse dia saberei que meu
marido descansa na paz que merece.
Tradução: Deborah Leão
https://theintercept.com/2018/01/15/em-seu-ultimo-ano-de-vida-martin-luther-king-passou-a-ser-detestado-pela-elite-liberal-dos-eua/
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