No
Brasil, consumidor pequeno e médio paga 40 vezes mais por energia do que as
multinacionais. E a privatização da Eletrobras só vai piorar isso
por Alex Ribeiro e Ednubia Ghisi para SENGE (PR) e Viomundo – Sociedade e Expoliações
do Golpe 2016
O
CEPEL de Adrianópolis, cuja pesquisa pode ser entregue de bandeja (Reprodução Ayrton 360 graus)
A
Eletrobras, empresa pública brasileira gigante do setor elétrico mundial, está
entre os alvos da política de privatização aplicada pelo governo Michel Temer.
Ela tem 233
usinas do Brasil e é responsável por um terço da energia consumida no país, com
receita líquida anual de R$ 60,7 bilhões.
A
intenção do Ministério de Minas e Energia é reduzir a participação da União na
Eletrobras para 47% e arrecadar cerca de R$ 20 bilhões com a venda.
Para
debater o tema, o Senge (Sindicato dos Engenheiros) do Paraná preparou este
especial O que está em jogo com a ameaça de venda da Eletrobras, a
partir de uma entrevista e de uma palestra do engenheiro eletricista Roberto
Pereira d’Araujo, diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor
Energético (Ilumina).
Ele
esteve em Curitiba em dezembro para o seminário A crise do setor
energético e a privatização da Eletrobras, realizada na Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
O evento
ocorreu pela iniciativa do Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho, Educação e
Tecnologia (GETET), do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade da
UTFPR, com apoio do Senge Paraná e da Seção Sindical dos Docentes da UTFPR
(SINDUTF-PR).
O
pesquisador é ex-chefe de departamento em Furnas Centrais Elétricas,
ex-conselheiro de administração de Furnas, entre 2003 e 2005, com experiência
na área de planejamento do setor elétrico.
Como
síntese da sua avaliação sobre o risco de venda da Eletrobras, o pesquisador
reforça a urgência de políticas de Estado que coloquem em primeiro lugar os
interesses coletivos, e não os individuais.
“Privatizar
é ter uma visão individualista. Ao contrário, a gente tem que ampliar essa
visão da coletividade”.
Setor
elétrico brasileiro no mundo
Ao
comparar o Brasil com outros países que utilizam hidroeletricidade, Roberto
Pereira d’Araujo afirma a predominância do controle estatal.
“Quais
são os países que têm hidroeletricidade na sua base elétrica? A China, a maior produtora de energia elétrica,
depois o Brasil, em seguida os Estados Unidos, a Noruega, a Suécia, e nenhum
deles você tem essa visão de que tem que ter tudo privado. Nos Estados Unidos, as grandes usinas são do
Estado, são controladas até pelo exército americano, e tem empresas
privadas”.
Sinalizar
a privatização é ir na contramão do que ocorre no mundo, avalia o pesquisador.
“Acho que nós estamos num caminho
equivocado, porque o futuro é do quilowatt-hora, e não é mais do barril de
petróleo. Os
carros serão elétricos, nossos telhados terão células fotovoltaicas. E a
Eletrobras é a única dona de um centro de pesquisa em energia elétrica. Então é
extremamente preocupante esse caminho”.
Complexidade
do modelo brasileiro
Roberto
Pereira d’Araujo classifica o Sistema
Elétrico brasileiro como único em todo o mundo, e de alta complexidade.
“O setor
elétrico brasileiro está uma complicação que pessoas que trabalham no setor
elétrico não entendem. Tivemos que imitar um sistema de base térmica”.
Se é
complexo para os profissionais da área, os consumidores de energia elétrica tem
dificuldades em entender a própria conta de luz.
“Por
exemplo, a bandeira vermelha, são 5 reais por cada 100 quilowatts hora. No
mundo ninguém usa essa unidade, usa ou quilowatts hora, ou megawatts hora.
Cinco reais por cada 100 quilowatts hora são 50 reais por megawatts hora.
Quando você faz o cálculo de quanto você paga, tirando a transmissão, imposto,
encargo, iluminação pública, quanto você consumiu de quilowatt hora, o aumento
é monstruoso, é de quase 20%, e a população fica enganada. O consumo médio
brasileiro é de 160 quilowatt hora, olha que maldade, imagina quem está
abaixo”.
Entre os
fatores que explicam isso estão as dimensões continentais do país.
“Se tem
algum a país com um sistema parecido com o brasileiro, por incrível que pareça,
é o Canadá, por também ter grandes reservatórios. Então ele também tem essa
dúvida, ‘vou usar água hoje, ou guardo ela’. Mas, se você pegar o Canadá, da
fronteira sul para a norte dá mil quilômetros. No Brasil são 4 mil quilômetros,
são 20% do diâmetro da terra. Se o país é longitudinal, ele tem variações de
clima. O nível de transferência de energia entre o sul e o sudeste é um negócio
inacreditável. É como se você pegasse quatro usina de Furnas e transferisse pro
sul. A função da transmissão no Brasil nenhum país do mundo tem. Se você
diminuir a capacidade de transmissão, a oferta cai. Provavelmente se você
cortar metade da transmissão, vai ter racionamento. Isso não existe em nenhum
país do mundo”.
Uma
especificidade do Brasil é que as usinas não vendem a sua geração de energia, e
sim uma cota-parte que o Sistema indica, o chamado certificado de Garantia
física, calculado com um modelo matemático que simula a “importância” da
usina para o Sistema como um todo.
A análise
do professor indica os seguintes percalços na opção por esse modelo.
“Os
certificados dependem do critério de operação. Os critérios são alterados
várias vezes, mas as garantias físicas não mudam. O preço de curto prazo é
fortemente influenciado pelo critério do operador. A ‘garantia’ dá claros
sinais de que está superavaliada”.
A
transmissão de energia primária entre regiões é outro diferencial de extrema
importância.
“No
sistema brasileiro, a transmissão não exerce apenas o papel de transporte de
energia entre usina e consumidor. Aqui, a transmissão ‘transfere’ usinas de uma
região para outra”, explica o professor.
Os
grandes reservatório das usinas funcionam como caixas d’água, que dão ao Brasil
o recorde mundial em capacidade de reserva de carga: numa situação hipotética
de seca total dos rios, o país teria energia por cinco meses, com a manutenção
do consumo atual.
De quem é
a ineficiência?
Um dos
argumentos utilizados para defender a privatização é que a empresa seria
ineficiente. Na avaliação do especialista, o problema não está na empresa.
“A
ineficiência não é da Eletrobras, a ineficiência é do modelo. O modelo impôs à
Eletrobras um papel que ela não deveria ter. Por trás da ineficiência da
Eletrobras, há, por exemplo, a falta de iniciativa do setor privado, que
precisa, além do BNDES, de parcerias com a Eletrobras. Você vai usando o Estado
além do que ele pode fazer”.
“A
Eletrobras foi muito fragilizada ao longo da história. Quando foram vendidas as
distribuidoras [no governo FHC], aquelas que o mercado não quis foram jogadas
em cima da Eletrobras, que teve que pegar empréstimo para comprar as
distribuidoras. Depois houve o negócio com o mercado livre, quando a Eletrobras
foi descontratada. Ela tinhas as tarifas mais baratas, mas foi descontratada, e
não podia vender no mercado livre. Continua gerando energia. Esse é que é o
problema, você não gera porque tem contrato, você gera por que o operador
nacional manda você gerar. Então ela perdeu muito dinheiro. Depois veio esse
efeito bumerangue do mercado livre, que não atraiu investimentos e por isso a
Eletrobras teve que fazer várias sociedades específicas, e teve vários
prejuízos. E depois, infelizmente, veio a medida provisória 779, de redução
tarifária, que foi uma redução correta”.
Retorno
às políticas liberais da década de 1990
Na
avaliação de Roberto d’Araujo, os problemas enfrentados pelo Setor Elétrico
brasileiro não são de hoje, e refletem a adoção de uma “modelo mercantil” que
tem início em 1995, com leis implementadas pelo governo Fernando Henrique
Cardoso (PSDB) com vistas à privatização.
Entre
1996 e 1999, a venda de empresas do setor consolida esta opção.
“Na
década de 90 nós vendemos 26 empresas do setor elétrico, a dívida pública subiu
de 34% para 71%. Depois não diminuiu muito não, continua mais ou menos nisso.
Nós estamos outras vezes com 70 e pouco por cento de dívida pública, e estamos
mais uma vez vendendo. Parece que a gente não está aprendendo. Quando o país
não aprende, esse argumento que você está vendendo ativos para resolver o
problema fiscal não tem o mínimo sentido. Nós temos que fazer uma conta: vender
a Eletrobras como o governo está propondo, seria preciso 20 Eletrobras, para
cobrir o déficit fiscal”.
A
privatização interessa, e muito, às grandes empresas.
“Eu não
tenho nenhuma dúvida de que chegar no Brasil e comprar uma empresa ou usinas
construídas, não existe negócio melhor. Você compra uma fábrica pronta,
produzindo o produto e você ainda negocia o preço ainda vai aumentar. Nós
estamos caminhando para a importância da energia elétrica aumentar
tremendamente. E como é que você tratar disso com empresas privadas que têm
lógicas de outros países. Nós estamos num vértice de caminhar para uma energia
completamente diferente, das fotovoltaicas”, aponta o pesquisador.
“Prêmio
Nobel para quem conseguir baixar a tarifa”
Ao longo
dessas duas décadas de privatização, entre 1995 e 2017, a tarifa média
residencial teve aumento de 50%. Já para as indústrias [do mercado cativo], o
valor da tarifa cresceu em 130%.
Os altos
custos fazem com que o país tenha a 5ª maior tarifa do mundo, conforme dados de
2016.
Apesar de
ter sistemas similares, o Brasil cobra o dobro da tarifa do Canadá.
“Estamos
com uma tarifa absurda, num país hidrelétrico. O que explica esse valor? São as
revisões tarifárias após a privatização”, aponta o integrante do Ilumina.
Para o
estudioso, os dados sobre o aumento da tarifa confirmam que “não é vantajoso
privatizar”.
Ele frisa
que o Setor Elétrico brasileiro já é de maioria privada, mas que há a construção
por parte da mídia de que “o Estado é culpado de tudo”.
Por isso,
ele ironiza: “Prêmio Nobel para quem conseguir baixar a tarifa” após a
privatização.
Mercado
livre e as grandes corporações
Se por um
lado o custo da energia para domicílios e fábricas menores está entre os
maiores do mundo, por outro, preço médio para tarifa o chamado mercado livre é
desconhecido, pela falta de transparência nas operações.
Nesta
fatia de consumidores estão grandes indústrias, inclusive de capital
internacional.
O que se
sabe, conforme apresenta Roberto d’Araujo, é que as empresas do mercado livre
economizaram 76 bilhões de reais em energia no último período.
“De 2003
até 2012, os preço do mercado livre estão muito abaixo do que a indústria
cativa paga e do que você e eu pagamos. Chegou a ordem de que nós pagamos 40
vezes mais do que alguém que está no mercado livre. […] A pequena indústria que
está no mercado cativo, que é atendida pelas distribuidoras, sofreu um aumento
de 95 até agora de 130% acima da inflação. Ou seja, as pequenas indústrias, que
não conseguem ir para o mercado livre por questão de tamanho e de carga, elas
vão embora do Brasil. É o que está acontecendo. Várias indústrias estão indo
para o Paraguai, porque tem uma energia praticamente gratuita, em função de
Itaipu”.
Fazem
parte deste mercado as grandes empresas, grandes produtores, que consomem
grandes cargas.
“O grave
é que ninguém sabe por quanto compra. É secreto”.
Esta
falta de transparência faz com que o Brasil não saiba qual é a tarifa média da
indústria, porque a indústria que está no mercado livre não revela por quanto
compra.
“O
mercado livre cresceu uma barbaridade entre 2003 e 2008. Os preços do mercado
livre são muito baixos. Hoje o mercado livre é mais ou menos 27% da carga
brasileira, e ela não atraiu investimentos. Duvido que alguém me aponte uma
grande usina que tenha sido construída para atender ao mercado livre. E o
governo percebeu isso e tomou a iniciativa de propor parcerias com o setor
privado, sendo a Eletrobras minoritária, para prover essa falta de vontade de
investir no Brasil”.
“Nós
somos um prato feito para as negociações secretas, porque nós não temos nenhuma
transparência”, garante Roberto d’Araujo.
Como
exemplo, ele cita o caso da usina de Belo Monte, em que a Eletrobras foi
obrigada a comprar energia que não foi comprada pelo mercado livre, por motivos
não divulgados.
Cepel em
risco: da autonomia à dependência tecnológica
Uma das
mais graves consequências da privatização, de acordo com Roberto d’Araujo, é a
perda da capacidade de pesquisa e inovação tecnológica voltada ao interesse
pública.
O Centro
de Pesquisas de Energia Elétrica foi criado pela Eletrobras em 1974, e é o
autor da metodologia de operação do Modelo de Planejamento da Operação de Sistemas
Hidrotérmicos Interligados de Longo e Médio Prazo, chamado newave, que
organiza o sistema brasileiro.
“No
passada não havia ONS [Operador Nacional do Sistema], não havia Câmara de
Comercialização de Energia, a Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica] era
um departamento nacional de águas e energia, e quem fazia a coordenação da
operação era a Eletrobras. Quando você pensa em transferir esse capital, se
transfere no hall. Na década de 90, o governo quis aplicar aqui o modelo
inglês, de competição real, contrataram consultores ingleses. Mas eles não
entendiam como o sistema brasileiro funcionava, eles queriam fazer com que as
hidrelétricas competem entre elas, e foi a Cepel que disse ‘o sistema não
funciona assim, funciona cooperativamente’. Você imagina o valor que tem isso.
Todo o modelo, chamado newave, que opera o sistema, e diz ‘agora
desliga essa cisterna, agora liga essa usina, agora o sul quem que transmitir
pro sudeste, agora o sudeste tem que transmitir pro nordeste’, isso foi feito
dentro do Cepel. Quando você vende, entrega de graça”.
Este
cenário ameaça a autonomia adquirida pela Eletrobras ao longo dos anos.
“Até
agora, o Brasil não era dependente de nenhuma tecnologia, nem de transmissão,
nem de geração, nem de construção de barragens, nada. Os estudos elétricos era
de vanguarda no Cepel. Agora, provavelmente, com a entrada das fotovoltaicas,
que a gente importa tudo, e das eólicas, que o Brasil só fabrica as pás. Nós
podemos ficar para trás. É um desastre, um país enorme desse, cheio de recursos
naturais, cheio de vento, cheio de rio”.
Políticas
sociais por água abaixo
O
programa Luz para Todos levou energia elétrica para 3,2 milhões de famílias e
15,6 milhões de brasileiros até 2015.
O
programa começou em 2003, em parceria da Eletrobras com o Ministério de Minas e
Energia, para superar uma triste estatística apresentada pelo IBGE: 21, 2
milhões de famílias no meio rural brasileiro não tinham luz.
Nos 12
primeiros anos do projeto, foram investidos R$ 22,7 bilhões nas obras, sendo a
maioria do recurso vindo do governo federal e o restante dos governos estaduais
e das distribuidoras de energia.
Nas
previsões de Roberto d’Araujo, caso a Eletrobras saia das mãos do Estado, este
tipo de política social vai deixar de existir: “Se você propuser isso para a
empresa privada, ela vai dizer sim, quanto você vai me pagar?”
O
pesquisador pondera sobre as facilidades também concedidas às grandes empresas,
usuárias do mercado livre.
“Ninguém
pode ser contra o Luz para Todos, teria que ser feito. O problema é como se
paga. Para que você tenha isso dentro de uma empresa pública, você não pode
fazer também um Luz para Todos para os grandes, esse é que é o
problema”.
http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/no-brasil-consumidor-pequeno-e-medio-paga-40-vezes-mais-por-energia-do-que-as-multinacionais-e-a-privatizacao-da-eletrobras-so-vai-piorar-isso.html
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