Esgotado
o modelo sindicalista que animou vitórias do PT e partidos de esquerda , há
oportunidade para um novo projeto da esquerda não desvinculado da figura do ex-presidente, mas
além dele
por Sebastian Ronderos e Lucas Augusto da
Silva para Outras Palavras – Sociedade e Luta Popular no Brasil
Desde o
impeachment da presidenta Dilma Rousseff, existe uma constante oscilação na posição ideológica dos
pré-candidatos para as eleições presidenciais. Basta uma notícia, uma
entrevista, um evento (ou mesmo a omissão sobre tais) associado ao nome do
candidato e o campo político se reestrutura.
Certas
vezes, basta a explícita opinião de um adversário para que um ou outro
candidato seja arremessado para um espaço abstrato na disputa ideológica (afim
ou oposto à opinião deflagrada). Bolsonaro é um desses casos emblemáticos: a própria existência de um candidato
que flerta com a ditadura militar, que impõe um discurso de asco às demandas
identitárias das minorias e que destila ofensas contra os parlamentares
progressistas acaba gerando uma espécie de afinidade ideológica entre os demais
candidatos que declaram oposição ao neofascismo. A existência de Bolsonaro
aproxima relativamente Marina Silva e Guilherme Boulos, por exemplo, na luta
contra a ascensão de um sugestivo totalitarismo de extrema direita.
Inúmeros
acontecimentos sucederam-se e deslocaram com relevância as peças nessa espécie
de gráfico dinâmico de orientação política e identificação popular: os
escândalos de corrupção contra membros do alto escalão do MDB, a campanha de
Michel Temer pela aprovação da contrarreforma da previdência, a intervenção
militar no Rio de Janeiro e, mais recentemente, a execução de Marielle
Franco. A
ocorrência mais relevante para esta reorganização ideológica, porém,
aconteceu em 6 de abril.
O mandado de prisão expedido contra o ex-presidente Lula remodelou a matriz ocupada pelas
candidaturas de esquerda e refletiu na adaptação de seus discursos. Ausente do
debate central (e do palanque no qual o petista discursou no Sindicato dos
Metalúrgicos de SBC), Ciro Gomes reafirmou seu distanciamento ao modelo
organizado pelos altos quadros do PT, o que não surpreendeu boa parte dos
candidatos da esquerda. O candidato do PDT parece repisar sua estratégia de
ocupação de um espaço de fato vazio de personificação (centro-progressista),
sustentada fundamentalmente na tecnocracia e em sua experiência política.
Contudo, a organização dos demais candidatos da esquerda de união em
solidariedade a Lula afasta Ciro da agenda progressista e o aproxima das
candidaturas que concorrem para conquistar os votos dos eleitores que tentam
fugir da polarização política.
Enquanto
Ciro parece se afastar da esquerda e se concentrar ao redor de outros
candidatos que mantêm um posicionamento mais frouxo sobre a prisão de Lula,
como a chapa formada por Marina Silva e Joaquim Barbosa, a fotografia simbólica
no palanque do sindicato na qual constam as três candidaturas expoentes da
esquerda no pleito presidencial prenuncia um fôlego providencial frente à
preocupação com a aliança feroz e fortalecida entre o grupos de mídia, poderes
Legislativo e Judiciário, e grandes concentradores de riqueza que orquestraram
a prisão de Lula e que desenvolvem um programa regressivo que ameaça as
conquistas democráticas dos últimos anos. Travestidos em um discurso
anticorrupção, estas energias fortalecem e reproduzem as bases que permitem que
o sistema criticado continue em progressão.
Esta
espécie de cartografia decantada após a prisão arbitrária de Lula permite
empreender uma análise mais sóbria sobre as estratégias envolvidas e nos leva a
oferecer algumas teses sobre o atual momento e futuro da esquerda brasileira.
Os
Limites do Consenso
Uma
condição central está submersa naquilo que consideramos ser o esgotamento de um
determinado modelo de poder baseado na aglutinação de demandas antagônicas (assemblage),
através de uma capacidade privilegiada de negociação. Esta estratégia,
desenvolvida ao longo da história do Partido dos Trabalhadores, através da
condução inquestionável de Lula, relacionamos ao que chamaremos de “modelo
sindicalista de poder”’ (MSP). Lula tem se destacado através de sua história
como um líder carismático com uma capacidade admirável de articulação e uma
sensibilidade estadista única na formulação de políticas públicas, na
reestruturação e profissionalização diplomática, na redistribuição de renda e
democratização do acesso à educação e demais serviços públicos. Mantendo a
conciliação, o ex-presidente astutamente estruturou uma cooperação dos setores
estratégicos na conformação do seu modelo de governo, conseguindo, com evidente
sucesso, transformações demográficas históricas.
Tal
agenda mostrou-se perfeitamente harmonizada com os próprios processos
históricos impulsionados por grandes pactos nacionais, desde a independência do
país — decretada e alcançada primordialmente por um sistema de concessões entre
oprimidos e opressores — até a derrocada da ditadura que, depois de finda, não
resultou em um plano de acerto de contas pelas elites militares. Ao invés de
relevantes rupturas protagonizadas pelos setores subalternos como impulso para
as transformações sociais, o que se observa na história política do Brasil são
constantes rearranjos de pactos que blindam os interesses dos atores dominantes
e, em contrapartida, oferecem concessões pontuais às classes exploradas. Isso
justifica, por exemplo, o isolamento do país diante dos vizinhos
latino-americanos nos processos de descolonização e abolição da escravatura.
As
conquistas obtidas pelo modelo aplicado são indiscutíveis: o Brasil deixou o
mapa da pobreza, as minorias raciais acessaram espaços anteriormente exclusivos
e o país voltou a ser um relevante protagonista nas instâncias de atuação
internacional. Ato contínuo, o golpe institucional de 2016 e a inelegibilidade
de Lula em 2018 são os reflexos evidentes do esgotamento desta estratégia de
coalizão. Ao ascender ao espaço de governo, o petismo tentou neutralizar os
antagonismos inerentes à própria disputa política, expressa desde Maquiavel já
no século XVI, fechando os olhos para as relações de poder que extrapolam as ocupações
efêmeras das instituições formais. A conformação das estruturas de poder,
centralizadas nas elites históricas, que possibilitou a promiscuidade entre os
poderes institucionais para atacar ferozmente o PT, não foram ocupadas de forma
adversa à gestão petista, mas fortalecidas pelo seu MSP.
Longe de
estabelecer a construção de uma contra-hegemonia, propiciando novos espaços de
poder que conseguissem sustentar uma nova correlação de forças diante das
necessárias reformas estruturais, o PT pareceu tentar incluir seus
representados e eleitores no racional da própria estrutura hegemônica
imperante, esculpida desde há muito por seus algozes. Qualquer das partes neste
acordo poderia ter reconhecido os limites orgânicos desta coalizão. Na hora H,
os inimigos estavam mais atentos e atacaram. No momento em que este modelo
apresentou certa inconveniência aos interesses de acumulação e concentração do
capital, bem como percebeu-se um tímido avanço no redesenho das fronteiras
constitutivas das classes sociais, a elite política, respaldada pelo apoio das
camadas médias brasileiras que “olhavam para a frente e viam os ricos se
distanciarem; olhavam para trás e viam os pobres se aproximarem” (palavras do
ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad), desatou os acordos a que tinha
aderido e iniciou a demonização do (ex)parceiro.
Lula: de
Significante Mestre a Significante em Disputa
Depois do
triunfo da Revolução Cubana, Fidel Castro pediu a Regis Debray que percorresse
a América Latina e fizesse uma análise sobre a repercussão do processo cubano
na região. Debray desenvolveu um relatório no qual reconhece que as elites
latino-americanas e os Estados Unidos compreenderam com maior rapidez a
importância de dita Revolução do que a própria esquerda. Esta característica
parece se repetir na atual conjuntura política no Brasil.
O período
que sucedeu o impeachment de Dilma Rousseff exigiu da militância da esquerda
brasileira a construção de uma narrativa monocórdia ancorada em dois
significantes simbólicos importantes: o “golpe” e o “Fora Temer”. Vale frisar
que boa parte das disputas integradas pela oposição a Michel Temer durante este
período, como o combate à reforma da previdência, foi alicerçada nesta
construção discursiva. Todavia, existe uma evidente limitação nas articulações
destas peças. Hoje o impeachment estabeleceu-se como golpe dentro do idílio da
esquerda nacional e com reverberações internacionais, porém Michel Temer deve
concluir seu mandato sem maiores transtornos.
Com a
prisão de Lula, contudo, o que avistamos, distantes da leitura mainstream
que enfatiza um iminente (e óbvio) retrocesso democrático, é a germinação de um
interregno que indica a necessidade de transição estratégica da esquerda
através do reforço dos antagonismos sociais após Junho de 2013. Uma oportunidade
única de aproveitar os avanços e as bases até agora cimentadas,
compreendendo-as não como erros táticos, mas como fundamentos na configuração
estratégica de uma transição estrutural, que reclama um processo de autocrítica
e renovação na configuração organizacional da esquerda. As elites, por sua vez,
parecem ter avistado esse interregno com maior avidez, reestruturando-se com a
mudança de ciclo econômico e se articulando mais rapidamente na guerra de
posições.
A
inelegibilidade (prática) e o encarceramento do ex-presidente apresentam-se
como revelação das cartas guardadas na manga pela oligarquia político-econômica
durante os mandatos petistas, e que agora foram escancaradas e estão
transparentes no tabuleiro ideológico. Longe de negar o evidente retrocesso
republicano que as instituições formais operam neste momento no Brasil, cabe,
em paralelo, analisar este acontecimento como uma janela de oportunidade para o
contra-ataque progressista.
Ao
pronunciar “não sou mais um humano; sou uma ideia”, Lula reconhece sua
capacidade ímpar de pautar o debate ideológico e disponibiliza seu próprio nome
(e legado) como significante a ser apropriado, além de perceber implicitamente
os limites que seu modelo de poder e o futuro curto de sua carreira política
(sobretudo pela sua idade) lhe impõem. É nesta vacância, neste espaço a ser
ocupado que identificamos a oportunidade sem precedentes da construção de um
projeto de robustecimento da esquerda: não desvinculado do Lulismo, porém
conscientemente reformulado a partir de seu potencial discursivo e da
inevitável crítica às bases metodológicas do MSP (mais uma vez, modelo
sindicalista de poder).
Da Razão
Sindical ao Bloco Histórico
Na
entrevista que Lula concedeu a Félix Guattari em 1982, quando questionado sobre
o programa econômico de seu partido (embora orientado por uma macro-proposta de
estatização de empresas privadas) o líder sindical pondera que “é preciso estar
com os pés no chão e saber que os processos de transformação não se dão porque
queremos, mas em virtude das forças políticas sobre as quais eles se apoiam.
(…) Nós não queremos ir com sede ao pote. Nós queremos é matar nossa sede”. Em
outra pergunta, Lula diz que “o PT aproximou as pessoas; criou novas relações
de fraternidade e lá as pessoas se sentem mais iguais”.
Ao
recorrer à obediência às forças políticas operantes nos processos de
transformação e à capacidade de conciliação entre contrários como emblemas de
seu projeto de poder, a liderança petista cria características
auto-explicativas do que aqui chamamos de MSP. Mais do que isto, sustentamos
que as potencialidades do MSP estabelecidas enquanto o partido ainda não havia
acessado o Executivo federal foram elas próprias as causas do enfraquecimento
dos mandatos Lula-Dilma e, atualmente, do esgotamento do próprio modelo, como
numa espécie de doença autoimune.
Não à toa
o arquiteto do golpe foi o próprio vice-presidente que compôs chapa com Dilma
Rousseff em 2014; não à toa cinco dos seis votos contrários ao habeas corpus
impetrado por Lula foram anunciados por ministros indicados pelos
ex-presidentes petistas; não à toa foram os mandachuvas das empreiteiras
privadas que mais lucraram na era Lula os mesmos que ofereceram o dossiê
probatório no qual foram sustentados todos os processo instaurados contra o ex-presidente.
A estratégia de comando político do PT, ao integrar aqueles que pareciam ser o
sistema imunológico perfeito contra as ameaças da oposição, ofereceu,
consecutivamente, o ambiente mais adequado para o ataque desenfreado dos
anticorpos contra as próprias células de seu tecido estrutural.
Todo este
processo se insere numa disputa política a campo aberto, pautada, desde 2008,
por uma nova crise do capitalismo financeiro e da democracia representativa a
nível internacional. Em determinadas ocasiões, e cada vez com maior força,
costuma ser a extrema direita que se conecta sem meias palavras com essa
insatisfação genuína frente ao limite dos marcos liberais, embora propondo
mecanismos que elevariam a precarização dos direitos econômicos, civis e
políticos a uma condição crônica.
Se as
instituições tradicionais da democracia liberal carecem de empatia
representativa no atual contexto político das sociedades ocidentais, a
reprodução das narrativas germinadas no interior dos mandatos petistas tampouco
apresentam uma alternativa satisfatória. É preciso compreender que não só a
extrema direita se apresenta como ameaça a esta oportunidade de recomposição
das estruturas democráticas, mas a própria manutenção de um projeto conciliador
e neutralizador das identidades antagônicas, com disponibilidade para o diálogo
com as ortodoxas e experientes elites políticas brasileiras, também põe em
risco a construção de uma contra-hegemonia.
Esgotado
o modelo, sobrevive o legado e uma oportunidade histórica se revela.
Uma vez
arrefecida a potência de uma racionalidade sindical como modelo de governo, uma
alternativa que pode confluir as demandas sociais dispersas sem esvaziar o
significante do “lulismo” seria a composição do que vinculamos com o que
Antonio Gramsci chamou de ‘Bloco Histórico’. Este conceito supõe um conjunto
complexo de relações sociais, potencializando estrategicamente forças tanto
materiais quanto simbólicas. Estabelece uma junção de formas jurídicas,
políticas, jornalísticas, artísticas, filosóficas e religiosas ao serviço da
consciência do momento histórico, empreendendo lutas populares sintonizadas que
superem as formas tradicionais de resistência e retaguarda, cavando trincheiras
criativas num movimento de avanço. Entende a centralidade do Estado, mas
compreende também a necessidade da criação e ocupação de espaços informais que
cultivam a memória social sensível, constituída primordialmente por expressões
culturais.
E por que
talvez esta seja a oportunidade única para o desenvolvimento desse embrião?
Porque a própria complexidade do momento levou a uma convocação espontânea de
um quadro que extrapola as fragmentações partidárias, propondo quase de forma
inadvertida a união precisa para uma estratégia vitoriosa, pois conecta com
demandas contemporâneas e acessa espaços por onde a esquerda tradicionalmente
tem dificuldade de caminhar. Além disso, se apropria do alcance que o
significante “Lula” tem de transbordar os limites convencionais, superando as
próprias armadilhas que a esquerda construiu discursivamente, ao estruturar
pautas transversais que atingem a sensibilidade do cidadão comum, mas, desta
vez, revelando os antagonismos que a própria polarização política exige.
O ocaso
do MSP levou a uma interseccionalidade de agentes, propiciando a ocupação deste
discurso, e o símbolo maior deste “bloco histórico” foi o palanque constituído
no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo: a aglutinação de
lideranças políticas e sociais, artísticas e religiosas, unidas em prol de uma
radicalização da democracia, representa uma ressignificação precisa do devir do
“lulismo”.
Mais do
que mostrar os dentes, o momento exige saber onde e como morder. Exige repensar
as alianças baseadas nas entranhas dos antagonismos sociais e conectar com os
insumos de insatisfação, concentrando o alvo naquelas reservas subjetivas e
coletivas expressas na carência de representação, que continuam dispersas e
órfãs desde 2013.
Este
projeto não se confunde com a unificação das estratégias eleitorais, nem com a
propositura (equivocada) de uma chapa única para o pleito eleitoral a seguir.
Pelo contrário, ele as engloba: a chapa formada por Guilherme Boulos (liderança
social consolidada) e Sônia Guajajara (expoente nas lutas dos povos indígenas)
somada à candidatura de Manuela D’Ávila (que empunha com maestria o discurso
feminista) e às figuras de Celso Amorim (voz ecoante nas internacionalidades),
João Pedro Stédile (líder do MST), Osmar Prado (representando a classe
artística) e peças-chave da Igreja Católica eleva a interseccionalidade a um
nível de diálogo com a sociedade civil providencial para o projeto de
radicalização do discurso da esquerda.
Basta
saber se, desta vez, o PT estará disposto a abandonar seu modelo de governo
para disputar o poder ou continuará alimentando os anticorpos que atacam seu
próprio tecido.
https://outraspalavras.net/brasil/uma-possivel-era-pos-lula/
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