O futebol, inegavelmente, faz parte de uma cultura popular cada vez mais
distanciada dos estádios por conta de um processo de elitização do esporte
brasileiro...
por Vini Oliveira no site A Nova Democracia – Sociedade e Exploração de Atletas Jovens no Brasil
Multidão comparece ao enterro de alguns dos jovens mortos no Ninho do
Urubu
Na manhã
do último dia 8 de fevereiro, o Brasil se deparou logo pela manhã com mais uma
tragédia de grandes proporções no ano de 2019. Após o crime de lesa-pátria
praticado pela Vale S.A. (o segundo desta magnitude em 3 anos) na cidade
mineira de Brumadinho e os alagamentos, deslizamentos e soterramentos ocorridos
no Rio de Janeiro como fruto da negligência de uma unidade federativa em
esfacelamento, um incêndio destruiu parte do alojamento das categorias de base
do Clube de Regatas do Flamengo, no Centro de Treinamento George Helal, também
conhecido como “Ninho do Urubu”, em Vargem Grande, na capital fluminense.
Ao todo dez adolescentes perderam suas vidas e três tiveram de ser
levados para CTIs de hospitais nas redondezas com queimaduras pelo corpo.
À medida
em que o dia corria e o monopólio da imprensa noticiava superficialmente o
ocorrido, não só familiares das vítimas, como também jornalistas menos
alinhados à subserviência típica das grandes emissoras e a população como um
todo eram fomentados a ensaiar questionamentos acerca do que de fato havia
acontecido. Afinal, sob que circunstâncias uma quantidade tão grande de jovens,
dentro das instalações de um clube que esbanja possuir o maior orçamento no
continente (R$ 750 milhões anuais), foram carbonizados?
Visão aérea do que sobrou dos containers que “alojavam” os meninos
Com a
pressão instaurada e aumentando cada vez mais por conta do assombroso silêncio
feito pela diretoria do Flamengo até o seu primeiro pronunciamento oficial,
diversas informações começaram a circular com tons “cautelosos” pelos veículos
de comunicação e até mesmo nos desabafos de revolta dos familiares
desamparados. A primeira dava conta de que a localidade não possuía nem mesmo o
alvará para o funcionamento, documento obtido após avaliação técnica do Corpo
de Bombeiros. Posteriormente, as notícias foram ganhando corpo e se
oficializando, quando a Prefeitura do Rio, além de se pronunciar ratificando a
informação junto ao órgão competente, alegou que o clube já havia sido multado
mais de 30 vezes por conta do problema e que havia mentido sobre o que
construiria no local, que deveria ter se tornado apenas um estacionamento.
Os
depoimentos prestados pelos familiares rapidamente ganharam a internet,
trazendo à tona mais detalhes sobre como havia sido construído o alojamento: os
“Garotos do Ninho” dormiam dentro de containers. Soma-se isso ao fato de que os
containers, que são feitos de ferro, possuíam janelas pequenas e instalações
elétricas manuais correndo por sua estrutura em uma rede única, e é possível
chegar à conclusão de que os meninos, que possuíam de 14 a 17 anos, na grande
maioria negros e pobres vindos de outros estados, foram assados vivos num
grande forno.
A ficha
que caía cada vez mais pesada para todos passou a contrastar com a tentativa de
vitimização do Flamengo, encabeçada pela maior parte da imprensa. O Ministério
Público, em 2015, havia pedido a interdição do local após uma inspeção, onde
ficaram constatadas condições análogas a de um presídio. Contudo, nada foi
feito além da presença de representantes do estado e do município em novas
construções irregulares do clube, como na reforma do Estádio Luso-Brasileiro,
na Ilha do Governador (RJ); o que mostra que não só o clube tem culpa no
cartório, mas também o poder público por sua conivência.
Entre Índio da Costa, Bandeira de Mello e Marcelo Crivella, Patrícia Amorim
(dir.), ex-presidente do clube e lobista como Secretária de Esportes do Rio
comemora obras na Ilha do Governador
Paixão versus cobiça move o esporte deste país
Para
entendermos a investida na vitimização do clube mesmo frente a tantas
evidências de sua responsabilidade, é necessário ter em mente um simples
discernimento acerca do que representa um clube de futebol no Brasil.
Na consciência coletiva,
principalmente na do torcedor, o clube de futebol possui um aspecto de uma
entidade folclórica e muitas vezes até divina; o que é normal se levarmos em
conta que o futebol, inegavelmente, faz parte de uma cultura popular cada vez
mais distanciada dos estádios por conta de um processo de elitização do esporte
que, por aqui, se agudizou com a realização dos megaeventos (2007, 2013, 2014 e
2016). Ou seja, os “clubes do coração”, como são chamados, são personificados
em algo muito similar a um ente da família, cada vez mais distante.
Sabendo
disso, é esperado que o aspecto empresarial de um clube se aproveite tanto para
arrecadar mais, quanto para se livrar das próprias responsabilidades. Quer
dizer, sob uma semicolônia, um clube de futebol forma uma dualidade
contrastante entre si. E é sob essa cortina de fumaça que se edificam as bases
da subjugação econômica-desportiva no país.
Charge retrata como clubes se eximem de suas responsabilidades
Submissão milionária do futebol no Brasil
Formar
atletas sob tais condições calamitosas não representa prejuízo para os
cartolas. Se considerarmos de antemão a fome por migalhas típicas dos
dirigentes brasileiros, constataremos que o futebol não é, em nenhuma hipótese,
desgarrado da economia e da política. Por isso, as gerências dos clubes
localizados em semicolônias como o Brasil reproduzem status quo das
gerências de turno do velho Estado. Isto é, administram e cedem para os
representantes das potências as riquezas que possuímos em troca de alguns
trocados.
Para se
ter uma noção, apenas em 2018, o chamado “mecanismo de solidariedade da FIFA”
distribuiu para clubes formadores de todo o mundo cerca de R$ 339 milhões.
Desse montante, R$ 40 milhões foram destinados apenas para o Brasil. Por mais
que as chamadas “joias” sejam vendidas por valores irrisórios para o futebol
europeu e chinês, sem condições de serem lapidadas aqui, os cartolas apostam em
futuras transferências dos atletas no exterior por valores que, atualmente, já
chegam a cifras bilionárias. Nessas transações, segundo a legislação da
entidade máxima do futebol, até 5% podem ser destinados àqueles que são
intitulados “formadores”.
O
documento que garante que um clube receberá sua porcentagem por uma venda
futura de um atleta é o Certificado de Clube Formador, emitido pela CBF, que
por sua vez funciona como sala de reunião e imposições da FIFA no Brasil.
Curiosa e cinicamente, na tentativa de enganar familiares, parte da imprensa e
a população acerca de possuir as documentações que o eximiriam de culpa na
tragédia do CT, o Flamengo apresentou este documento quando foram requisitados,
na verdade, os alvarás. Em alto em bom som, quase como deboche, a apresentação
do documento soa como: “não estávamos em situação regular, mas o lucro em cima
dos que não morreram ainda está garantido”.
O caso do jogador Coutinho
Um outro
exemplo de como essa prática pode ser proveitosa ocorre no arquirrival do
Flamengo, o Club de Regatas Vasco da Gama. Em 2008, sob a administração do
cartola Eurico Miranda, Philippe Coutinho, a maior revelação do clube nas
últimas décadas foi vendida, ainda menor de idade, à Internazionale de Milão
(Itália) por cerca de R$ 10 milhões (R$ 16 milhões com o câmbio atual).
Assim como Neymar, Coutinho começou a ser negociado com a Europa quando
criança pelo Vasco da Gama
Em 2013,
porém, o Vasco recebeu mais R$ 1,1 milhão pelo mecanismo, em valores
atualizados, na transferência do atleta do futebol italiano para o Liverpool
(Inglaterra). Em 2018, uma nova transferência, dessa vez do Liverpool para o
Barcelona (Espanha) rendeu ao Vasco, também em valores atualizados, outros R$
17,2 milhões – acima do que o clube havia recebido inicialmente pela venda do
atleta. Como o último mandato de Eurico se encerrou também em 2018, sob
acusações de fraudes no processo eleitoral para presidência, parte desse valor
já havia sido abocanhado pelo grupo econômico de Eurico quando a nova diretoria
do clube chegou à administração.
Ou seja,
é extremamente lucrativo, considerando o enriquecimento individual de
dirigentes e a transferência de patrimônio aos grupos econômicos que parasitam
esses mesmos clubes (Crefisa e Parmalat no Palmeiras, MRV no Flamengo, BMG no
Corinthians, Banco Inter no São Paulo, Bank of America no Vasco – todas
sobreviventes da especulação, do rentismo, do latifúndio e de fraudes fiscais),
formar atletas a qualquer custo, mesmo que em meio a alojamentos feitos de
containers e sem alvarás, como no Flamengo, ou com vazamento de esgoto e
presença de ratos, como é denunciado a décadas por diversos atletas que
passaram pelas instalações de São Januário, sede do Vasco.
Ratazana é vista em meio a cadeiras de São Januário/Vaco da Gama, no Rio
Gestores não são solução
Assim
como no cenário político-econômico nacional, no futebol tais questões não se
resolvem com promessas de “gestões inovadoras”, incapazes de romper com a
subjugação ao exterior. A atual gerência do Vasco, por exemplo, crítica das
ações acima citadas por parte de Eurico e que se viu incapaz de realizar, na
prática, algo diferente do antigo mandatário, estipulou o orçamento anual do
clube para 2019 levando em conta especulações em torno de prováveis vendas de
seus ex-atletas que atuam na Europa. Como parte dessas vendas não se
concretizaram, o clube passa por uma nova crise financeira. O próprio Flamengo,
responsável pela tragédia em questão, é tido como maior exemplo de gestão
bem-sucedida no país, enquanto engana seus sócios com pagamentos de juros da sua
dívida.
Por isso,
é válido lembrar que, apesar do discurso, nenhum outro grande centro
futebolístico do país está em uma melhor realidade: o CT do Almirante,
localizado em Duque de Caxias (RJ) e que pertence ao Vasco, também não possui
documentação oficial; o mesmo vale para o CT Pedro Antonio Ribeiro da Silva, na
Barra da Tijuca e para os alojamentos em Xerém, que pertencem ao Fluminense,
clube que propagandeia possuir uma das melhores estruturas de base; ainda no
Rio, o Botafogo, por sua vez, nem mesmo oferece um CT a seus atletas.
Confiante na impunidade, Fernando Simone, do Fluminense/RJ, declarou confiar que o CT do clube não será interditado
Em São
Paulo, apenas após a tragédia no Rio, o Ministério Público abriu uma
investigação para apurar a ausência de documentos que comprovariam a
regularidade nas instalações da Portuguesa, do Corinthians, do Santos, do São
Paulo e do Palmeiras. Em Minas Gerais, Cruzeiro e América Mineiro estão sem a
documentação. No Rio Grande do Sul, apesar de possuírem as documentações,
Grêmio e Internacional terão vencidas as mesmas em plena utilização dos CTs, no
auge da temporada.
Fora dos grandes centros e clubes de futebol brasileiros
Conhecedor
da precariedade das instalações rubro-negras, o comentarista e ex-goleiro do
clube, Getúlio Vargas, revoltado com o cenário, teve a ideia de divulgar seu
próprio contato para que jovens, familiares, funcionários e até atletas
profissionais de todo o país denunciassem anonimamente as situações precárias
em que treinam e se alojam.
De
imediato, dezenas de denúncias chegaram até ele. Entre os casos enviados para
Getúlio, surgiram chuveiros que espirram água na instalação elétrica, tomadas
sobrecarregadas, atletas que dormem no chão do ônibus por falta de alojamento,
camas com estrados quebrados, infestações de pragas e de falta de saneamento
básico.
Comentarista divulgou as denúncias anônimas vindas de todo o Brasil e
divulgadas nas redes sociais
Os clubes
que, unidos pelo corporativismo, tentam classificar a morte de dez adolescentes
como uma fatalidade, são os clubes que, na mesma semana, presenciaram um
segundo incêndio em CTs, no dia 11 de fevereiro, dessa vez na Base Aérea dos
Afonsos (RJ), enquanto jovens atletas do Bangu estavam alojados.
Por
questões alheias ao clube e à Força Aérea Brasileira (proprietária do local), o
incidente não se converteu em outro desastre; afinal, no horário do incêndio os
meninos estavam acordados, tendo sido levados ao hospital “apenas” pela
inalação de fumaça.
Se com a
dita desindustrialização do país ficamos reféns da oscilação de preços commodities,
produzidas com o custo da morte de milhares de trabalhadores em acidentes como
os de Brumadinho e Mariana, sob condições de escravidão para servir ao
exterior, no futebol estamos reféns da descoberta e da exportação de jovens,
vivos ou não.
https://anovademocracia.com.br/noticias/10397-as-cinzas-de-uma-farsa-o-futebol-que-nao-se-desenvolve-no-brasil
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