‘Nós
vamos ver os militares na política brasileira por um bom tempo’, diz
pesquisador
por Marco Weissheimer no
Sul 21 – Sociedade e Luta Popular por Liberdade no Brasil
Rodrigo Lentz: “O ativismo está
no DNA das Forças Armadas brasileiras desde o nascimento da República”. (Foto:
Luiza Castro/Sul21)
O retorno
dos militares à cena política brasileira, ocupando postos no primeiro escalão
do governo Bolsonaro, não é um acontecimento casual e momentâneo. Desde o
nascimento da República, os militares jamais abandonaram o papel de atuar como
uma espécie de poder moderador. O ativismo está no DNA das Forças Armadas
brasileiras desde o nascimento da República. Com a crise do sistema político
brasileiro, especialmente a partir das manifestações de 2013, vistas como uma
ameaça à estabilidade da sociedade, os militares colocaram em marcha a doutrina
de ação política prevista em seus manuais. E não pretendem sair de cena tão
cedo. A avaliação é do advogado Rodrigo Lentz, ex-coordenador da Comissão de
Anistia e doutorando em ciência política da Universidade de Brasília com a tese
“As relações de poder entre civis e militares no Brasil: o pensamento político
da Escola Superior de Guerra pós-88”.
Em
entrevista ao Sul21, Rodrigo Lentz fala de sua pesquisa sobre o
pensamento militar brasileiro, suas manifestações mais recentes e sobre por que
esse retorno dos militares à cena política não deve ser de curto prazo. “Eles
identificaram fortes pressões ao sistema político e as consideraram como uma
potencial e contundente ameaça à expressão política do poder nacional e,
consequentemente, às outras expressões desse poder. Quando um juiz de
primeiro grau quebra o sigilo de forma ilegal, torna público o diálogo do
comandante em chefe das Forças Armadas e o comando das Forças Armadas não dá um
único pio e depois disso ainda condecora esse juiz, ficou claro que, quem
estava dando suporte a esse juiz, eram eles, o que vem se confirmando cada dia
mais”, sustenta o pesquisador.
No método
de ação política dos militares, acrescenta Lentz, aparece de modo muito claro o
uso das instituições jurídicas e políticas para resolver os distúrbios
funcionais do sistema político. Esse uso está previsto como uma das medidas
preventivas que podem ser adotadas. O pesquisador também acredita que os
militares estiveram por trás da guerra tecnológica na campanha eleitoral. “É
praticamente impossível que não estivessem. É uma técnica (de guerra
eletrônica) que eles dominam mais do que qualquer outro civil. Eles têm um
batalhão de guerra eletrônica e formaram oficiais para atuar especialmente em
redes sociais”.
Devemos
nos preparar para ver os militares na vida política por um bom tempo, adverte.
Um dos indicadores mais recentes disso é que não apenas generais da reserva
estão ocupando postos no governo. A presença de Luiz Eduardo Ramos, um
general da ativa, na Secretaria de Governo, leva mais ainda a política para
dentro dos quarteis. “Não tenho dúvida nenhuma que eles estão estudando e
planejando o que devem ser para os próximos anos. Não é uma entrada pueril. Nós
vamos ver os militares na política por um bom tempo”.
Abaixo a entrevista com Rodrigo Lentz:
“Dá pra perceber nesta formulação
do pensamento militar alguns traços de Carl Schmitt”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)
Sul21: Qual o objeto central de sua
pesquisa sobre o pensamento militar brasileiro?
Rodrigo
Lentz: Muita
gente foi pega de surpresa quando os militares vieram para o centro político
nacional de uns anos para cá. Muitas pessoas não acreditavam nesta atuação
política dos militares e hoje estão atrás de respostas prontas e conclusivas a
respeito dessa atuação. Já te adianto que eu não tenho essas respostas. O
trabalho que estou desenvolvendo é procurar enxergar uma tradição no pensamento
militar brasileiro que, com o passar dos anos, vai sofrendo algumas mudanças
conservadoras. A primeira versão de manual doutrinário da Escola Superior de
Guerra, fundada formalmente em 1949, é de 1974. Eles demoraram, então, 25 anos
para conseguir formatar um pensamento dos militares a respeito do Brasil. A
partir de 1974, foram sendo feitas atualizações neste manual doutrinário básico
que orienta o sistema de ensino das Forças Armadas. Apesar de haver uma relação
de autonomia entre as escolas de Estado Maior das três forças, há uma
integração em torno dos termos mais gerais desse pensamento.
Sul21: Qual é a matriz conceitual
desse manual doutrinário? A que tradição suas ideias se filiam?
Rodrigo
Lentz: Estou
procurando fazer essa construção. Eu organizo esse conteúdo em três grandes
grupos: um núcleo duro, um núcleo político e um núcleo operacional. No
primeiro, que é o centro nervoso dessa doutrina, há uma forte presença do
pensamento de Santo Tomás de Aquino. Eles afirmam claramente a existência de
uma crença em Deus, em um princípio transcendental e na ideia de um bem comum.
Há também a ideia de que o fim do ser humano é a felicidade e que ela jamais vai
ser alcançada na terra, mas somente no reino dos céus. Quando a gente vê hoje
os militares ou o próprio Bolsonaro falando em Deus é por que isso faz parte do
tronco do pensamento deles. Além disso, há uma crença na natureza humana, que
também vem um pouco de Tomás de Aquino, e uma noção orgânica da sociedade,
baseada na Teoria dos Sistemas, segundo a qual a sociedade tem uma organização
sistemática, esse sistema tem um objetivo e para ele ser atingido os seus
órgãos, as partes que compõem o todo, devem ser preservados.
Sul21: A citação a Tomás de Aquino
é explícita?
Rodrigo
Lentz: Sim, é
explícita nos manuais pré-1988. O que acontece pós-1988 é uma pasteurização do
vocabulário, que vai inclusive alterar a nomenclatura utilizada. Não se fala
mais, por exemplo, em segurança nacional, mas sim em defesa nacional, o que, na
prática, é a mesma coisa, mesmo que teoricamente exista uma distinção entre
defesa e segurança. A segurança é muito mais ampla que a defesa, que está mais
voltada para a parte externa. ‘Segurança’ envolve segurança nacional e uma soma
de várias outras coisas.
Sul21: O conceito do “inimigo
interno” aparece neste núcleo duro da doutrina?
Rodrigo
Lentz: Sim,
mas isso vem muito mais da Teoria dos Sistemas. A ideia é que todo sistema
recebe e faz incentivos e tem como pressuposto a própria sobrevivência e
preservação. Isso é intrínseco ao conceito de sistema. Então, um sistema sempre
vai estar suscetível a pressões, tanto do âmbito interno quanto do meio
ambiente. No caso do sistema político, essas pressões podem ser antagônicas ou
não antagônicas. O inimigo é o antagônico. Ainda estou trabalhando com esse
tema, mas dá pra perceber nesta formulação do pensamento militar alguns traços
de Carl Schmitt e a concepção de antagonismo como definidor da própria
política, de que sem antagonismo a política não existe.
“Na prática, para os militares
potencialmente, tudo pode vir a ser inimigo”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)
O inimigo
vai aparecer quando ele se expressar como uma força antagônica. Não sendo
antagônico, será apenas um adversário que não vai ameaçar as bordas do núcleo
duro desse pensamento. Ao mesmo tempo, eles falam que a ameaça antagônica,
representada pela ideia de inimigo, pode ser potencialmente identificada. Ou
seja, em um determinado momento ela pode ainda não ser antagônica, mas
potencialmente pode vir a ser. Assim, a linha divisória entre o que é
antagônico o que não é fica turva. Na prática, potencialmente, tudo pode vir a
ser inimigo.
Sul21: Nos textos com os quais está
trabalhando, há uma referência explícita a que inimigos seriam estes?
Rodrigo
Lentz: Ainda
não terminei de ler todos os manuais mais recentes, das décadas de 70 e de 80.
No da década de 70 há uma referência explícita, no de 80 bem menos.
Sul21: E essa referência explícita
é o comunismo…
Rodrigo
Lentz: Sim, o
comunismo. No de 70, isso aparece muito carregadamente. O de 80 bem menos,
embora chegue a citar também. A partir dos anos 90, deixa de existir a
nominação desse inimigo, desse poder antagônico; passa a ser uma referência
mais pausterizada.
Sul21: Esses manuais tratam também
de geopolítica, de uma visão sobre qual deve ser o papel no mundo, quais
aliados e inimigos?
Rodrigo
Lentz: Existe
uma leitura, digamos, historicista, sobre o Brasil com base numa concepção
geopolítica que tem o Golbery (do Couto e Silva) como principal referência.
Essa visão de geopolítica coloca o Brasil alinhado, em razão do território e da
história, com os Estados Unidos, a grande potência das Américas. As outras
referências históricas e culturais são Inglaterra e França. Portugal é referido
em outros termos. Há um caráter brasileiro que decorre da história nacional e
essa história está estreitamente vinculada aos Estados Unidos. Cabe lembrar que
a própria república brasileira recebe a denominação de Estados Unidos do Brasil.
Então, há um alinhamento geopolítico com os Estados Unidos, mas em momento
algum eles dizem que isso significa subordinação. A ideia é que, até por uma
questão de segurança continental, o Brasil deve ter os Estados Unidos como
amigo.
Sul21: Em certos momentos no período
da ditadura, os militares brasileiros contrariaram interesses dos Estados
Unidos, como no caso do acordo nuclear com a Alemanha. Além disso, a política
externa teve uma aproximação com países não alinhados na África e em outras
regiões. Aparentemente, havia um interesse nacional que justificava esses
movimentos. Agora, no governo Bolsonaro, isso parece ter desaparecido com os
militares abraçando esse alinhamento total com os EUA. Como entender essa
posição atual que parece representar uma mudança importante?
Para militares, Estado não deve
ser empresário, mas regulador, e o eixo da economia deve ser o mercado e a
empresa privada. (Foto: Luiza Castro/Sul21)
Rodrigo
Lentz: Essa é
uma das grandes questões, mas antes de tentar responder tua pergunta, gostaria
de fazer um retrospecto. As forças armadas brasileiras começam a se
profissionalizar principalmente a partir da década de 1920. O serviço militar
passa a ser obrigatório a partir de 1918. Até então, o pensamento militar
estava associado à ideia de bacheralismo, algo, aliás, que aparece ainda hoje.
Quando o general Villas Boas criticou Olavo de Carvalho pelo Twitter, ele foi acusado
de ser um bacharelista, um papo que já tem mais de cem anos de idade.
Na década
de 20 surgiram os chamados jovens turcos, militares brasileiros que
participaram de missões na Alemanha e na França e tiveram contato com militares
turcos que, na transição de século, estavam tomando as rédeas da construção de
uma república a partir do fim do Império Otomano. Esses militares voltaram para
o Brasil com uma concepção transformadora do Exército, que não era apenas de
obediência ao poder civil. Foi daí que surgiu a doutrina do general Góes
Monteiro, segundo a qual a questão militar não era mais somente militar, mas
também envolvia a economia, a política e as questões sociais. O Exército passa
a pensar o país a partir de uma visão mais ampla, não estritamente militar.
Góes Monteiro participa da Revolução de 30, do governo Getúlio Vargas, do
Estado Novo.
É neste
contexto que surge a Escola Superior de Guerra, que começa a tentar formular um
pensamento nacional que esteja acima dos partidos políticos, mas que tenha uma
concepção ideológica e uma doutrina de ação política. Essa doutrina terá uma
visão geopolítica, posições sobre as instituições políticas, sobre a cultura
brasileira, questões psicossociais, além das questões estritamente militares.
Eles desenvolverão uma concepção de poder nacional, que é a estratégia. Os fins
são os objetivos nacionais e os meios são os poderes nacionais, ou o poder
nacional que é composto por várias expressões. Quando conseguem consolidar esse
pensamento, passam a ter uma expressão política, que envolve os três poderes
constitucionais, o poder militar, que envolve as três armas e seus poderes
auxiliares, a expressão econômica e a expressão psicossocial. Na década de 80,
surge uma quinta expressão, que é a da ciência e tecnologia.
Desse
emaranhado todo eles extraem também uma concepção sobre o papel do Estado na
economia. Desde o início da consolidação dessa doutrina, está muito claro que
defendem uma concepção de Estado regulador. O Estado não deve ser empresário,
mas regulador, e o eixo da economia deve ser o mercado e a empresa privada. Ao
Estado, nesta concepção, cabe agir como um ajustador das disfunções do
capitalismo. Assim, a Petrobras é estatal não porque há uma convicção
ideológica de que uma empresa desse tipo deve ser nacional e estatal. Nada
disso. Não vi esse argumento nem na década de 70 nem na de 80.
Sul21: Não aparece a ideia da
Petrobras como uma empresa estratégica para a soberania energética do país, que
também é um elemento relacionado à segurança nacional?
Rodrigo
Lentz: Mas
isso não implica que ela seja estatal nem nacional. Há um histórico de disputa
dentro das Forças Armadas, com a presença de grupos mais nacionalistas e
estatistas que defendiam capital nacional e empresa nacional, com outra
concepção sobre o papel do Estado. Mas com a limpa que aconteceu depois de
1964, essa disputa praticamente desapareceu. No início da ditadura, entre 1964
e 1967, o ministro da Economia era Roberto Campos, que é igual ao Paulo Guedes.
Esses três primeiros anos foram super liberalizantes, de abertura total ao
mercado e ao capital externo.
Mas essa
orientação começou a dar errado. A minha hipótese de interpretação é que ocorre
então uma intervenção do Estado na economia não por uma crença ideológica
nacionalista, mas sim por uma questão de segurança. Em razão de um conjunto de
ameaças e da insuficiência do setor privado para enfrentá-las, era necessária a
intervenção do Estado. Isso está presente na doutrina militar. Ela tem um
método de ação política onde eles vão identificando as ameaças e vão
mobilizando todas as expressões, inclusive a econômica. Há cenários previstos
na doutrina, por exemplo, onde é preciso estocar comida, estatizar certos
setores de forma temporária, proibir o capital estrangeiro em determinadas
áreas estratégicas. Mas tudo isso por uma questão de segurança nacional.
Então, se
você me perguntar por que os militares não se opõem hoje à venda de empresas
como Embraer, Petrobras ou Eletrobrás – e se a minha hipótese estiver certa – é
porque eles não enxergam nestas operações uma ameaça à segurança nacional. Essa
é a resposta que eu daria. Até bem pouco tempo era meio que proibido falar
sobre segurança nacional, pois esse era um tema associado à ditadura. A própria
esquerda interditou o debate sobre segurança nacional.
“Deixamos de conversar sobre esse
conceito mais amplo de segurança e interditamos esse tipo de assunto”. (Foto:
Luiza Castro/Sul21)
Sul21: O Livro Branco da Defesa
Nacional, lançado em 2012, não faz esse debate?
Rodrigo
Lentz: O Livro
Branco propõe uma estratégia nacional do ponto de vista das relações externas e
representa um grande avanço. Esse documento apresenta com transparência vários
conceitos estratégicos e programáticos acerca do Estado nacional e da sociedade
em geral, sob a perspectiva do Brasil para fora. Não fala nada do Brasil para
dentro. E os maiores problemas políticos que estamos enfrentando dizem respeito
ao Brasil para dentro.
Nós
deixamos de conversar sobre esse conceito mais amplo de segurança e
interditamos esse tipo de assunto. Fizemos de conta que ele deixou de existir
dentro das forças armadas. Agora esse é o nosso grande problema. O sistema
político não conseguiu responder à crise que o atingiu, especialmente a partir
de 2013. Mais do que uma crise, na verdade, podemos falar de uma falência desse
sistema que ruiu. O sistema de financiamento eleitoral ruiu, o modelo de
representação política idem. E a resposta desse sistema não foi capaz de
resolver os problemas que surgiram. Essa é uma das hipóteses que explicam por
que os militares passaram a ser ativos nos acontecimentos a partir daí.
Sul21: As cenas de grandes multidões
nas ruas protestando, em 2013, foi vista pelos militares como uma potencial
ameaça à segurança nacional?
Rodrigo
Lentz: Com
certeza. Identificaram fortes pressões ao sistema político e as consideraram
como uma potencial e contundente ameaça à expressão política do poder nacional
e, consequentemente, às outras expressões desse poder. Não tenha dúvida disso.
Quando um juiz de primeiro grau quebra o sigilo de forma ilegal, torna público
o diálogo do comandante em chefe das Forças Armadas e o comando das Forças
Armadas não dá um único pio e depois disso ainda condecora esse juiz, ficou
claro que, quem estava dando suporte a esse juiz, eram eles, o que vem se
confirmando cada dia mais.
No método
de ação política dos militares aparece de modo muito claro o uso das instituições
jurídicas e políticas para resolver os distúrbios funcionais do sistema
político. Esse uso está previsto como uma das medidas preventivas que podem ser
adotadas.
Sul21: Existe algum dissenso dentro
das Forças Armadas em relação a essas questões ou esse pensamento é totalmente
hegemônico?
Rodrigo
Lentz: Sim.
Tudo o que estou te dizendo compõem um quadro estrutural que vem formando o
pensamento dos militares há mais de 70 anos. Nada se mexeu. O conteúdo desse
quadro, sobre quais devem ser os objetivos nacionais, sobre como se interpreta
a conjuntura política a partir das informações colhidas, quem faz essas
interpretações, tudo isso é algo que muda. Há o fator humano aí que vai estar
sujeito à ideologia, a preferências políticas, econômicas e profissionais.
Dentro desse campo, há divergências.
Nosso
grande problema é fazer um levantamento e conseguir entender todo esse quadro.
Temos pouquíssimos contatos e pontos de diálogo e de comunicação. Posso dizer
com segurança que os militares, em geral, sentem falta disso também. Eu sempre
trabalhei com o tema da ditadura. Militar, para mim, era sinônimo de tortura,
mortes, desaparecimentos, terrorismo de Estado. Essa era a imagem que eu tinha
deles. Quando comecei a ter um contato mais direto com eles, por conta do meu
trabalho em Brasília, conheci outra realidade. Há inclusive pessoas que podem
ser consideradas de esquerda dentro das Forças Armadas. Existe um grupo de
pesquisa no Rio que está fazendo um estudo, financiado pelo Ministério da
Defesa, para pensar as forças armadas do século 21. Eles conseguiram aplicar um
questionário para mais de nove mil oficiais e conseguiram fazer um perfil
desses oficiais. O Exército tem uma boa distribuição em termos de classe
social, mas não tanto em termos de raça. Mas dentro de suas fileiras há
representantes de várias classes sociais.
Sul21: Em que medida os trabalhos da
Comissão da Verdade impactaram a relação com os militares?
Rodrigo
Lentz: A
grande questão em relação, não só à Comissão Nacional da Verdade, mas à
apuração do que aconteceu neste passado autoritário, é exigir que os militares
façam uma auto-crítica, reconheçam seus erros e peçam desculpas quando várias
instituições do Estado e da sociedade não fizeram isso. Isso causa uma certa
indignação entre os militares, com razão eu diria. Nós vemos, por exemplo, a
OAB, entidade da minha classe, se vangloriando como defensora da democracia e
das liberdades individuais, quando ela apoiou o golpe de 1964. A CNBB apoiou o
golpe de 64. Do mesmo modo o fizeram várias empresas de comunicação, a FIESP e
o próprio STF para citar algumas instituições. Os militares pensam: tudo bem,
nós somos os vilões da ditadura, fizemos o serviço sujo e vocês saem como os
defensores da democracia. E nós temos que fazer a auto-crítica primeiro?
“Eu acho que os militares estavam por trás da
guerra tecnológica na campanha eleitoral”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)
Sul21: Você referiu antes que o pensamento
dos militares valoriza muito o princípio do realismo. Tendo esse princípio em
mente, o que se pode dizer da relação dos militares com o presidente Jair
Bolsonaro e figuras como Olavo de Carvalho? Uma relação que, em poucos meses de
governo, vem sendo marcada por várias trombadas.
Rodrigo
Lentz: Eu
escrevi um artigo recentemente fazendo uma crítica a um ensaio do professor
Costa Pinto, da Economia da UFRJ, que defendeu a existência de uma congruência
ideológica dos olavistas com os militares a partir de uma doutrina do general
Coutinho, um general da reserva que é muito ativo nas redes sociais. Ele faz
uma série de críticas ao marxismo cultural e procura construir uma série de
conceitos de algo que poderíamos chamar de anticomunismo do século 21. O
comunismo e o marxismo não morreram com a queda do Muro de Berlim, diz ele, e
desenvolveram uma roupagem nova com o politicamente correto, o marxismo
cultural, a ideia de direitos humanos e por aí vai. Isso estaria quebrando a
coesão dos valores tradicionais da sociedade. Costa Pinto tomou algumas
declarações do Mourão e do Villas Boas dizendo que há um dissenso na sociedade
que tem promovido a quebra da coesão nacional e que o politicamente correto
está sendo usado contra essa coesão nacional.
No meu
texto, eu sustento que não tem nada a ver uma coisa com outra. A ideia de
coesão interna vem muito mais da visão orgânica de sociedade, baseada na teoria
dos sistemas, do que de uma suposta congruência com a doutrina do general
Coutinho. Os militares não endossam o olavismo. Já tivemos vários episódios
demonstrando isso. A critica ao marxismo cultural não aparece no pensamento dos
militares. Por serem realistas, eles não endossariam uma teoria dessas. O que
eles têm em comum é a crítica ao sistema político em geral.
Há, é
certo, uma certa convergência de valores conservadores. Os militares são uma
instituição conservadora. O modelo de sociabilidade dos militares também
desempenha um papel importante aí. O chefe da memória institucional da Escola
Superior de Guerra, que é um tenente-coronel, está fazendo uma tese de
doutorado em História onde sustenta que a ESG é uma maçonaria estatizada. Os
militares caíram no colo do Bolsonaro muito mais por gravidade do que por
convicção ideológica. O que eles têm em comum que não é trivial é uma mesma
sociabilidade. Eles convivem em vilas militares, em casas de fraternidade da
Maçonaria, da Rosa Cruz e outras organizações do tipo.
Sul21: Qual é o tamanho dessa
presença da maçonaria?
Rodrigo
Lentz: É
fortíssima. Tanto entre os militares quanto no Judiciário. Eles têm um processo
de sociabilidade muito comum que os aproxima. Eles consideram também que há um
preconceito em relação aos militares em alguns setores da sociedade. Esse
preconceito existe, em parte, porque o trauma da ditadura não foi enfrentado
pela instituição militar e pelas instituições civis. Esse trauma e esse
preconceito vão continuar até essa questão seja resolvida. A instituição
militar precisa entender também que eles não precisam carregar esse fardo. Os
militares se posicionaram fora do sistema político pós-1985. Essa turma do
Bolsonaro, embora estivesse dentro, era um desvio do sistema. As próprias
intervenções do Bolsonaro sempre foram à margem da Constituição de 1988.
Sul21: Essa aproximação parece ter
se acentuado significativamente na campanha eleitoral de 2018, não?
Rodrigo
Lentz: Eu acho
que os militares estavam por trás da guerra tecnológica na campanha eleitoral.
É praticamente impossível que não estivessem. É uma técnica (de guerra
eletrônica) que eles dominam mais do que qualquer outro civil. Eles têm um
batalhão de guerra eletrônica e formaram oficiais para atuar especialmente em
redes sociais. Além disso, fazem operações psicológicas com base na tecnologia
desde a década de 60. Desde 1966 o Exército brasileiro organiza cursos de
operações psicológicas. Em 2009, foi criado o Comando de
Comunicações e Guerra Eletrônica do Exército (CCOMGEX), com um batalhão
especializado em guerra eletrônica.
Sul21: Quando esteve em Porto
Alegre, há alguns dias, o general Mourão disse que o Brasil estava sendo alvo
de uma guerra cibernética, referindo-se às mensagens divulgadas pelo The
Intercept envolvendo o ex-juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol.
Rodrigo
Lentz: O
Brasil sempre esteve em guerra, na visão dos militares. Os militares sempre
estão em guerra, mesmo em tempos de paz. Quem é o inimigo objetivo hoje? O
inimigo objetivo já existia, mesmo antes dos comunistas. Os métodos usados
contra a oposição política, no período pós-64, já eram usados contra os presos
comuns: os instrumentos de tortura, os esquadrões da morte, tudo isso já
existia. A própria Lava Jato fez uso de métodos que eram largamente aplicados
pelo direito penal brasileiro, especialmente contra negros pobres. Quem é do
direito criminal sabe bem disso. Então, nem o sistema nem os instrumentos são
novidades. A novidade é o alvo. Eu não sei as Forças Armadas têm hoje a Rússia
e a China como inimigos como no tempo da Guerra Fria. Está tudo muito solto,
não tem uma doutrina que afirme isso. Há um alinhamento geopolítico com os
Estados Unidos que é doutrinário e tem uma longa tradição.
Como é
que o campo democrático se posiciona diante desse cenário? Nosso grande
problema é a falta de informação. Não temos um nível de informação minimamente
razoável para definir nossa ação política nesta conjuntura. Especula-se demais,
projeta-se muito mais do que o que realmente existe e, assim, a tendência de
erro é gigantesca, como ficou demonstrado nos últimos cinco anos. O que se errou
neste período foi uma barbaridade.
Sul21: Vários oficiais que
desempenharam funções de comando na missão internacional chefiada pelo Brasil
no Haiti assumiram postos no primeiro escalão do governo Bolsonaro. De que
maneira, essa experiência no Haiti pode ter afetado a visão dos militares
brasileiros sobre a situação interna do Brasil?
Rodrigo
Lentz: Desde o
nascimento da República, os militares jamais abandonaram o papel de atuar como
uma espécie de poder moderador. No Haiti, e em outras missões internacionais,
os militares foram chamados a se envolver na política. Os militares começaram a
executar os planos dessas missões e a ver problemas que não eram resolvidos
pelos civis. A área da segurança pública é um ótimo exemplo disso. Os militares
foram chamados pelos civis para se envolver mais neste problema. Chega um ponto
que eles se dizem: se os civis não conseguem resolver, nós temos que resolver.
Os generais que foram para as missões externas passaram a desempenhar boa parte
das funções do Poder Executivo. Eles eram os articuladores políticos e os donos
da ordem.
Então, o
Haiti foi um ótimo laboratório e eles voltaram para o Brasil com todos os
problemas que o país tinha, com um sistema político desacreditado e uma
estrutura de financiamento eleitoral falida, estimulando ativismo que está no
DNA das forças armadas desde o nascimento da República. Não é à toa que são
justamente esses oficiais que estão no governo Bolsonaro. É quem as Forças
Armadas têm de melhor para desempenhar essas funções. Não tenho dúvida nenhuma
que eles estão estudando e planejando o que devem fazer para os próximos anos.
Não é uma entrada pueril. Nós vamos ver os militares na política por um bom
tempo. O desafio é como integrá-los na política sem perder a soberania
democrática, civil e popular, que está submetida às ruas e não a uma
interpretação dos anseios populares definida na doutrina dos militares.
Editoria:
Entrevistas,
z_Areazero
https://www.sul21.com.br/areazero/2019/06/nos-vamos-ver-os-militares-na-politica-brasileira-por-um-bom-tempo-diz-pesquisador/
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