Em oito meses, Governo
Bolsonaro toma série de medidas que colocam em xeque a autonomia
universitária
por Felipe Prestes no site Sul 21 – Sociedade
e Ensino Brasileiro Pós-Golpe 2016
Imagem na internet: Paulo Freire,
legado do ensino no Brasil
Iniciado
há pouco mais de oito meses e caótico em várias áreas, a administração federal
pós-golpe 2016 (governo republicano, sic) tem se mostrado bastante eficiente na apresentação
de medidas que atentam contra a autonomia das instituições federais de ensino
superior (IFES). Em março, um decreto extinguiu centenas de funções
gratificadas em universidades. Em maio, outro decreto determinou que a nomeação
para cargos como o de vice-reitor e pró-reitor das instituições passasse pelo
crivo do Governo.
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no site sul 21:
Programa Future-se coloca organizações sociais no centro da administração das universidades
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Enquanto essas medidas mais
claramente afrontam funções que cabem às universidades – ambos os decretos são
contestados pelo Ministério Público Federal, e, no caso da extinção de funções
gratificadas, as instituições sediadas no Rio Grande do Sul já obtiveram
liminar a seu favor – outras iniciativas são mais controversas do que ilegais.
É o caso da nomeação de diversos reitores que não foram os primeiros colocados
da lista tríplice apresentada pela comunidade acadêmica.
O Governo
Federal já nomeou cinco reitores que não foram primeiros colocados das
consultas nas universidades, e nomeou o primeiro colocado em seis
oportunidades. Em outro caso, na Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD), o Governo não reconheceu as eleições da entidade e nomeou uma reitora
temporária que sequer estava na lista tríplice. Isto porque a UFGD encaminhou
apenas o nome do primeiro colocado da lista, já que os demais se retiraram da
disputa. Iniciou-se uma disputa judicial, mas, enquanto isto, a reitora
temporária nomeada pelo Governo está exercendo o comando da universidade. Caso
semelhante ocorreu no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da
Fonseca (Cefet-RJ). O MEC contesta a consulta pública para diretor-geral e
nomeou um funcionário do Ministério para o cargo de diretor interino, o que tem
gerado fortes protestos dos estudantes.
O presidente Jair Bolsonaro dá
posse ao novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, em cerimônia no Palácio
do Planalto. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
A
autonomia universitária está definida pelo artigo 207 da Constituição Federal,
que diz que “as universidades gozam de autonomia didático-científica,
administrativa e de gestão financeira e patrimonial”. Por outro lado, a Lei
9192/1995 define que a universidade deve encaminhar lista tríplice e o
presidente fica livre para nomear qualquer dos três candidatos. E é o que
aponta o secretário de Ensino Superior do MEC, Arnaldo de Lima Barbosa de Lima
Júnior: “A autonomia didático-pedagógica está garantida na Constituição
Federal. O que está sendo feito é respeitar a lei, que diz que é preciso eleger
um dos nomes de lista tríplice. É a democracia”.
“A gente
está estarrecido”, afirma o presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das
Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN) Antônio Gonçalves Filho. Para o
dirigente sindical, a Lei 9192/1995 é uma norma infraconstitucional e não pode
estar acima da Constituição. Ele entende que a autonomia universitária deveria
passar pela escolha do reitor. “A gente acha que tem que ser eleição direta e a
escolha se encerrar dentro da instituição”.
Professora do Departamento de
Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP Nina Beatriz Stocco. Foto: USP
Imagens
Para a
professora do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP
Nina Beatriz Stocco, porém, a escolha do segundo ou terceiro colocados na lista
tríplice não fere a autonomia das instituições, embora considere uma decisão
política que desprestigia as universidades. “Em princípio eu diria que não fere
a Constituição, porque o órgão mantenedor, que é o Estado, acaba interferindo.
Não existe autonomia absoluta, não estamos falando de independência ou
soberania. Se fosse independência, aí sim estaria ferindo. O órgão mantenedor
tem algum tipo de controle. Isso é em todo lugar. Todos os países que têm um
modelo semelhante são assim”, explica.
Entretanto,
quando o assunto é a interferência do Governo (ilegal ou fora da Constituição
Federal) na nomeação dos cargos de segundo escalão das universidades, a
professora tem outra opinião. “Aí sim eu vejo que fere a autonomia. Não há
previsão legal (para interferência do Governo), como há na escolha do reitor. A
organização interna era sempre feita pelas universidades”, afirma a professora
da USP. Nina Beatriz Stocco cita também o projeto Future-se como um possível
risco à autonomia das instituições federais de ensino. “O que se percebe é que
as organizações sociais terão muita influência no ensino e na pesquisa, e então
as universidades vão ter um problema de autonomia”.
Para o
MPF, o decreto que retira dos reitores a livre nomeação de pró-reitores e
diretores, “viola frontalmente as disposições constitucionais pertinentes à
Autonomia Universitária” e significa “verdadeira intromissão na administração
destas instituições”, pois “toda a atividade administrativa, de gestão ou
didática cientifica passa a ser determinada pela Presidência da República e não
mais pelas próprias universidades e institutos federais”. Já a extinção de
funções gratificadas, “em número impressionantemente alto, compromete quase que
em absoluto o funcionamento administrativo” das universidades.
Lucia Pellanza. Foto: Luiza Castro/Sul21
A reitora
da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Lúcia Pellanda,
demonstra preocupação em conscientizar a população sobre a importância da
autonomia universitária. “As pessoas podem confundir às vezes, ‘ah, querem
fazer o que bem entendem’. A autonomia é muito importante para nós. Significa
que não vamos estar sujeitos a um partido político, a um indivíduo, ao mercado.
Vamos abrigar todas ideias”.
Modelo
paulista de autonomia universitária pode trazer algumas vantagens ou
desvantagens
Nas
universidades estaduais de São Paulo, também se estabeleceu a autonomia
universitária no processo de redemocratização do país. A diferença é que por lá
foi estabelecido que 9,57% da arrecadação de ICMS (imposto sobre consumo,
mercadorias e serviços) iria para as três universidades públicas (USP, UNICAMP
e UNESP). “Uma vez que são repassados esses recursos, eles são administrados
livremente. Existe uma previsibilidade. No modelo federal, não há essa
previsão. Não há nada que garanta mesmo recursos básicos para manutenção”,
afirma Nina Beatriz Stocco.
Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP. Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Passados
trinta anos desde a medida, USP e UNICAMP costumam ocupar as primeiras posições
nos rankings que definem as melhores universidades do país. Mas nem tudo deu
certo. A professora de Direito de Estado da USP conta que houve momentos em que
a folha de pagamento das universidades excedeu o montante arrecadado com ICMS e
foi preciso fazer planos de demissão voluntária. “Houve erros e acertos, mas os
resultados são positivos”, diz.
Para Nina
Beatriz Stocco o modelo aplicado em São Paulo poderia ser implementado nas
universidades federais. “É um modelo já testado e que tem 30 anos. O Governo
talvez pudesse fazer isso com algumas universidades que fazem mais trabalho de
pesquisa, para que se organizassem”, afirma.
Presença
militar pós-golpe 2016 em universidades federais chama atenção dos
brasileiros
Além das
medidas do Governo Federal que atentam contra a autonomia universitária,
chamaram atenção alguns episódios com relação à presença militar nas
universidades federais. Em fevereiro, a reitoria da Universidade Federal
Fluminense (UFF) criou um cargo de assessoria militar, “para fins de
articulação e cooperação com o Ministério da Defesa e as Forças Armadas”. A
assessoria era composta por dois professores da instituição e pelo capitão-de-mar-e-guerra
Gustavo Bentenmüller Medeiros Pereira. Com a pressão da comunidade acadêmica,
porém, a reitoria voltou atrás e desfez o órgão.
Em julho,
uma servidora da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) foi designada como
assessora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Embora seja uma
instituição civil, a Abin tem forte presença militar e está sob o guarda-chuva
do Gabinete de Segurança Institucional, comandado pelo General Augusto Heleno.
Também na UFMS, no mês de julho, um militar filmou de maneira bastante
ostensiva a palestra do cientista Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN), durante a 71ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC). A palestra falava sobre os cortes no
financiamento da ciência brasileira. Embora os militares do Comando Militar do
Oeste tenham sido convidados para a reunião e tivessem até estande no evento,
chamou atenção a forma como a palestra foi filmada, com um militar se
aproximando bastante dos presentes que faziam perguntas ao palestrante para
filmá-los.
“O fato é
que uma simples participação dos militares na Academia não pode ser vista como
perseguição”, afirma o advogado Rodrigo Lentz, ex-coordenador da Comissão de
Anistia e doutorando em ciência política da Universidade de Brasília, onde
estuda a Escola Superior de Guerra (ESG). “Militares fazem estudos, mestrado,
doutorado. No ano passado, em encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), apresentei um trabalho sobre a ESG,
havia militares participando e não houve qualquer problema”, complementa.
Rodrigo Lentz. Foto: Luiza
Castro/Sul21
Lentz
afirma que no caso das nomeações para a UFF e UFMS não havia interferência dos
militares e acredita que pode ser estratégia política das próprias
universidades. “Nesses dois casos, pelo que apurei, não se trata de ingerência.
Pelo contrário, é mais um desdobramento das interações dos militares com a Academia”.
Quanto ao caso da filmagem, ressalta que a área de ciência e tecnologia tem
grande interação com os militares. “Eles se sentem à vontade para irem fardados
neste tipo de evento. Pode ser intimidação ou não. Pode ter tido alguma prática
individual também”.
Embora
minimize esses casos, Lentz compreende o receio da comunidade acadêmica. “Esse
receio é normal por conta do histórico e da falta de autocrítica dos militares
de seus próprios atos. A gente tem um grande trauma com relação às Forças
Armadas, inspiram pouca confiança quanto à garantia da democracia. Tem um
histórico e não há nada que garanta que isso não possa ocorrer de novo”,
diz.
Se nestes
pequenos episódios Rodrigo Lentz acredita que não há uma ingerência do comando
militar, quando o assunto são as políticas do Ministério da Educação que
afrontam a autonomia universitária, como a interferência nas nomeações de
pró-reitores e diretores, o pesquisador acredita que há, sim, participação das
Forças Armadas: “Neste ponto identifico uma política com dedo da doutrina dos
militares. Eles estão pensando o Governo, estão pensando a universidade e isso
vai envolver o controle de quem ocupa os cargos”, afirma.
Lentz
explica que a Escola Superior de Guerra tem um manual básico de doutrina de
ação política. “Essa doutrina tem uma visão funcional, sistêmica. Quando há
parte desse organismo que cause perturbação é preciso agir. Se eles acharem que
a postura da universidade está em desacordo, eles vão agir. Mas não vai ser num
arroubo, se dá com informação, com estratégia”, relata. De acordo com a
doutrina da ESG, o poder nacional se divide em várias formas de expressão, que
são o meio para se chegar ao fim, que é o bem comum. “Neste manual a
universidade faz parte da expressão psicossocial do poder nacional, junto com
mídia, família, escola, associações”, explica o pesquisador da UNB.
Para
Lentz seria um erro as universidades se fecharem para as Forças Armadas, apesar
de pontuar que é um cenário “onde as universidades precisam se defender”. “O
melhor cenário seria uma integração, mas que parta da garantia de plena
autonomia das universidades. O conservadorismo militar certamente vai gerar
choques, mas as universidades poderão influenciar uma instituição que precisa
muito do pensamento democrático das universidades”.
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