Mesmo com
lei, Justiça nega prisão domiciliar para cerca de 80% de mães e grávidas no
Brasil
Prevista pelo Marco Legal da
Primeira Infância desde 2016, prisão domiciliar é ignorada em audiências de
custódia e processos de primeira instância, segundo ITTC
por Manuela Rached Pereira no site Ponte Jornalismo – Sociedade e Justiça Brasileira Injusta
Foto: Gláucio Dettmar/Agência CNJ
“O dia a
dia na prisão, quando você é mãe de uma criança, é o de uma mãe olhando para a
outra em contagem regressiva, imaginando o corredor da morte, da entrega do seu
filho”. Egressa do sistema prisional, Desirée Mendes descrevia a um
público pequeno no centro de São Paulo, o período em que esteve presa na
capital, acusada por tráfico de drogas, enquanto era mãe de três filhos
pequenos.
Durante
evento, na última quarta-feira (4/9/2019), para o lançamento do relatório “Diagnóstico da Aplicação do Marco
Legal da Primeira Infância para o Desencarceramento de Mulheres”,
do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania), Desirée relatava uma realidade
verificada pelo estudo: o direito ao exercício da maternidade,
previsto em lei, tem sido negado pela Justiça brasileira a gestantes e mães
presas provisoriamente na maioria dos casos analisados.
Sancionada
em 2016, a Lei 13.257
garante a aplicação da prisão domiciliar a presas provisórias quando gestantes
e mães de crianças de até 12 anos ou com filhos portadores de deficiência. O
relatório do ITTC, contudo, revela que a maioria das mulheres que se enquadram
nesse perfil é mantida na prisão, a partir da análise de decisões judiciais em
audiências de custódia e processos de primeira instância.
O estudo
acompanhou o caso de 601 mulheres em três etapas de julgamento: audiências de
custódia, processos de instrução e recursos em tribunais superiores. Nas duas
primeiras fases, foram acompanhadas as decisões do Fórum Criminal da Barra
Funda (SP), entre junho e agosto de 2018, e do Centro de Detenção Provisória de
Franco da Rocha, entre março e novembro do mesmo ano. Já na última etapa, os
processos analisados são de março de 2016 a julho do ano passado, a maioria de
Tribunais Superiores da capital paulista (52%) e os demais vindos outras
regiões brasileiras, do sul ao norte do país.
Segundo
Amanda Rodrigues, uma das autoras da pesquisa, verificou-se nas primeiras
etapas processuais a existência de padrões decisórios pautados em “noções
subjetivas de gênero e maternidade”.
“Ainda
existe uma maioria [de juízes] que usa critérios não fundamentados em lei para
a não aplicação do Marco Legal. São decisões que demonstram que a questão de
gênero ainda é muito subentendida e a noção da maternidade muito pautada em
valores morais dos atores judiciais”, avalia a pesquisadora.
De acordo
com o relatório, nas audiências de custódia foram assistidas 201 mulheres, das
quais 56% são negras, 53% jovens entre 18 e 29 anos, e 74% com renda mensal de
até R$ 1.000. Entre as potenciais beneficiárias da prisão domiciliar, 83%
tiveram o direito negado nessa primeira fase.
No CDP de
Franco da Rocha, as decisões judiciais seguem um padrão parecido: 80% das
possíveis beneficiárias não tiveram suas prisões provisórias convertidas em
domiciliar. Do total dos casos analisados, a maioria é também de mulheres
negras (62%) e jovens (54%), enquanto 26% declararam que sua ocupação
profissional se relacionava a serviços domésticos e de limpeza.
Sobre o
perfil das mulheres acompanhadas nas primeiras etapas da pesquisa, Amanda
ressalta a seletividade das decisões condenatórias. “A gente sabe que essa é
uma visão seletiva, uma vez que ela recai sobre a maioria das mulheres pobres,
negras e jovens, de territórios geralmente privilegiados para ações da
polícia”, avalia.
Dados
divulgados pelo Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias),
no ano passado, confirmam a avaliação da pesquisadora. Segundo o mais recente relatório
do sistema, há um perfil comum entre as mulheres no sistema penal brasileiro:
50% têm entre 18 e 29 anos, 62% são negras, 45% não chegou a completar o Ensino
Fundamental, a maioria possui dificuldade de acesso a ocupações profissionais
formais e 74% delas têm filhos.
Guerra às drogas
Ainda
segundo Amanda, também foi possível identificar nas fases iniciais da pesquisa
que a maioria das mulheres mantidas presas foi sentenciada por crimes
relacionados ao tráfico de drogas, embora a maior parte dos casos que chegavam
às audiências e tribunais fossem de infrações patrimoniais relacionadas a furto
e roubo.
“A gente
pode relacionar o aumento do encarceramento feminino com as operações feitas a
partir da Lei de Drogas [promulgada em 2006], porque foi a partir daí que o
encarceramento de mulheres cresceu em proporções muito maiores que o
masculino”, explica.
De acordo
com o Infopen, entre os anos 2000 e 2016, houve um aumento de 656% da população
carcerária feminina, enquanto a masculina cresceu 293% no mesmo período. O
sistema aponta que a maioria das mulheres encarceradas no país responde por
crimes praticados sem violência, sendo o tráfico de drogas o mais recorrente,
responsável por 62% das prisões. O furto, crime patrimonial também praticado
sem violência, é responsável por 9% do encarceramento, enquanto a incidência de
roubo é de 11%.
Tribunais Superiores
Na última
etapa da pesquisa, o instituto acompanhou 200 decisões do Supremo Tribunal
Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), todas relativas a
mulheres que teriam direito à prisão domiciliar. Neste grupo, diferentemente
dos anteriores, a maioria dos casos recebeu a substituição da prisão preventiva
pela domiciliar. Do total, 11 tiveram liberdade e, das 189 mulheres restantes,
116 tiveram concedida a domiciliar e 73 tiveram o pedido negado. A taxa de
concessões de prisão domiciliar nos Tribunais Superiores foi, portanto, de
61,37% e a de negativas de 38,62%.
Para
Amanda, conforme as mulheres se aproximam das instâncias superiores, mais
“abstratas” elas se tornam aos olhos da Justiça, uma vez que os juízes não têm
acesso ao perfil das condenadas. Esse distanciamento físico, segundo a
pesquisadora, “torna mais fácil para os ministros e ministras reconhecerem-nas
enquanto mães, dentro de um ideal abstrato, a serem protegidas por suas
decisões”.
A pesquisa
indica ainda para uma mudança no perfil de quem tem acesso a instâncias
superiores quando comparado a quem chega às fases iniciais do processo. “A
maioria possuía advogado constituído. Eram, por exemplo, esposas de políticos,
funcionárias públicas e advogadas, ligadas a crimes de colarinho branco e que
ocupam uma posição econômico-social muito distinta daquelas que auferem sua
renda através de atividades informais e instáveis”, explica Amanda.
Em
fevereiro do ano passado, o STF (Supremo
Tribunal Federal) determinou, por meio de um “Habeas
Corpus Coletivo”, que a aplicação da prisão domiciliar deveria ser concedida a
todas as mulheres na condição de gestante ou mãe previstas pelo Marco Legal da
Primeira Infância. Em dezembro daquele mesmo ano, foi publicada a Lei 13.769,
estabelecendo critérios objetivos para a substituição da prisão preventiva por
domiciliar.
Proferida
pelo relator Ministro Ricardo Lewandowski, a decisão, no entanto, foi mais
restritiva que a lei de 2016. Nela, foram incluídas exceções nos casos de
crimes cometidos com violência ou grave ameaça, contra descendentes, ou ainda
em “situações excepcionalíssimas”.
“Mesmo
assim, o que a gente viu é que não são os crimes dessa natureza que levam os
juízes a negar. Então a maioria das mulheres que a gente analisou está sendo
acusada de crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, como tráfico de
drogas ou furto. Mas, aparentemente, os juízes seguem considerando o tráfico
como um crime gravíssimo”, afirmou Irene Maestro, também pesquisadora do ITTC e
uma das autoras do relatório, durante o lançamento.
https://ponte.org/mesmo-com-lei-justica-nega-prisao-domiciliar-para-cerca-de-80-de-maes-e-gravidas/
Que o diga os 11 patetas , que pelo jeito brincam de justiceiros
ResponderExcluir