º Boaventura Santos analisa a
América Latina, o que ocorre nos últimos anos, a arrogância da onda conservadora e reacionária assumiu
proporções assustadoras. Assistimos à consolidação de uma aliança tóxica entre a voracidade da concentração da riqueza promovida pelo neoliberalismo e o consequente empobrecimento das grandes
maiorias, a agressividade crescente dos discursos e práticas neofascistas, racistas e misóginas, o conservadorismo fundamentalista religioso pentecostal,
cristão, judaico, islâmico, hindu, a manipulação grosseira das instituições democráticas e sistemas
judiciais e o negacionismo da iminente
catástrofe ambiental, principalmente no Brasil...
º Se a lawfare (o uso do direito para liquidar adversários políticos) contra Lula da Silva for neutralizada,
poderia ser o candidato da esquerda nas eleições presidenciais de 2022. Duvido,
no entanto, que o queira ser...
por Boaventura de
Sousa Santos* no site OUTRAS PALAVRAS e Revista IHU on-line – Sociedade
e Luta Popular Contra Dominação dos EUA
Imagem na internet
Nos últimos anos, a arrogância da onda
conservadora e reacionária assumiu
proporções assustadoras. Assistimos à consolidação de uma aliança tóxica entre a
voracidade da concentração da riqueza
promovida pelo neoliberalismo (e o
consequente empobrecimento das grandes maiorias), a agressividade crescente dos
discursos e práticas neofascistas, racistas e misóginas,
o conservadorismo fundamentalista
religioso cristão, judaico, islâmico, hindu, pentecostal, a
manipulação grosseira das instituições
democráticas e sistemas judiciais e o negacionismo da iminente catástrofe ambiental.
Tudo isto tem contribuído para uma certa paralisação da imaginação política e
da potência rebelde dos oprimidos. Como se caminhássemos para um abismo levados
por um desígnio demasiado superior às nossas forças para poder ser travado. Nos
últimos tempos, contudo, em diferentes partes do mundo, surgiram sinais de que
nem tudo está perdido. Do Líbano ao Iraque, do Chile à Argentina, as populações
golpeadas pelo poder injusto e corrupto mobilizaram-se nas ruas ou nas urnas
para proclamarem bem alto: Basta! O futuro destas mobilizações é incerto mas, pelo menos, graças a elas, parece certo
que continuamos a ter direito ao futuro.
Em 7 de Novembro, o Supremo Tribunal Federal do Brasil contribuiu para fortalecer a
ideia de que, também neste país, nem tudo está perdido. Decidiu, por escassa
maioria, repor uma verdade constitucional que, tal como muitas outras, parecia
convertida numa relíquia do passado democrático onde os fins não justificavam
os meios: o acusado é presumido inocente até se esgotarem
todas as instâncias de recurso. Como Lula da Silva, tal como
cerca de 5 mil presos nas prisões brasileiras, fora preso em violação desta
norma, a sua soltura ocorreu nos dias seguintes. Lamentavelmente, o mesmo não
aconteceu com os demais presos ilegalmente, mas a figura de Lula da Silva era demasiado grande
para que a maioria do povo brasileiro e, afinal, os democratas do todo o mundo
não festejassem incondicionalmente a decisão do STF. Notou-se no mundo um respirar de alívio: a deriva
autoritária do Brasil tinha limites, a ilegalidade institucionalizada podia
ser travada. Tal como sucede com os outros acontecimentos no mundo animados por
um impulso democrático, esta decisão judicial, apesar de mostrar que nem tudo
está perdido, nada nos diz sobre o que efetivamente se ganhou ou pode ganhar
com base nela. Para avaliar as suas potencialidades e cuidar de ampliá-las e
concretizá-las, há que refletir sobre as lições do processo político-judicial
que culmina na decisão do STF e nos
desafios com que a democracia brasileira se defrontará nos próximos tempos.
Começo pelas lições.
1. A justiça e
democracia defendem-se nas ruas e nas instituições. Uma das
campanhas mais notáveis dos últimos anos foi certamente a campanha “Lula Livre!”. Contribuíram para isso vários fatores. A
figura carismática de Lula da Silva
e a tenacidade da defesa da sua inocência comoveram o mundo. A organização em
rede de milhares de grupos de ativistas, alguns deles mobilizados inicialmente
por brasileiros e brasileiras espalhados pelo mundo, revelou uma enorme
capacidade de mobilização. Num tempo em que é tão difícil juntar vontades em volta
de causas precisas e consensuais, a campanha Lula Livre! oferecia a oportunidade de defender uma pessoa
concreta, vítima de uma maquinação politico-judicial concreta, uma
pessoa que o mundo conhecera como o mais notável de todos os presidentes do Brasil, que tirara da pobreza cerca de
50 milhões de brasileiros e que mostrara não ser necessário ser doutor para ser
sábio.
2. O imperialismo
não pode usar o sistema judicial dos países da sua zona de influência
com a mesma eficiência e brutalidade com que utilizou os militares nos tempos
passados. Os objetivos do imperialismo norte-americano foram sendo cada
vez mais claros: travar a influência da China, neutralizar os BRICS, que é a aliança
do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul para criar uma zona econômica relativamente autônoma do domínio do dólar,
como potencial ameaça à sua hegemonia na região e no mundo. Desde o fim da Guerra
Fria, ensaiavam novos modos de intervenção que sucedessem à velha guerra
contra o comunismo. E as novas guerras foram emergindo: a guerra contra as
drogas, a guerra contra o terrorismo e, finalmente, a guerra contra a
corrupção. Todas elas foram desenhadas para, de maneira aparentemente não
política, promover governos leais aos desígnios imperiais dos EUA: acesso aos recursos naturais e
tratamento favorável às empresas multinacionais norte-americanas. E,
consequentemente, neutralizar governos considerados hostis a esses desígnios.
Todas estas guerras, e muito
particularmente a última contra a corrupção,
envolveram um enorme investimento na formação de magistrados e na criação de
instituições locais que liderassem a “luta contra a corrupção”. Uma vez eleitos
os parceiros locais, ser-lhe-iam dadas todas as condições, nomeadamente, a mais
preciosa de todas: o acesso, por via da CIA
e do Departamento de Justiça, a
dados que só as empresas globais (norte-americanas) de big data detêm. Sérgio
Moro e Deltan Dallagnol foram selecionados para serem os “campeões da luta
contra a corrupção”. Há vários anos, o Departamento de Justiça tinha elegido a Petrobras, a Embraer e a Odebrecht como alvos
privilegiados da luta contra a
corrupção. Leia-se, como empresas concorrentes das empresas norte-americanas
e, como tal, devendo ser destruídas ou absorvidas. Era importante não aplicar a
regra do “too big too fail” que permitia punir os dirigentes por
corrupção sem destruir as empresas, como foi o caso da Goldman Sachs na Inglaterra e
da Volkswagen na Alemanha.
A República de Curitiba agiu em
conformidade, de acordo com o roteiro que lhe foi dado e como agente de um
governo estrangeiro. Foi demasiado grosseiro para ser processado por todo o
sistema judicial sem contradições.
3. O papel dos meios de comunicação democráticos é
hoje mais crucial que nunca. Se não fosse o vazamento da promiscuidade entre
juiz e procuradores e da lógica que animava a sua conspiração por parte do Intercept,
dirigido por esse notável jornalista que há muito devia ter o Premio Nobel da
Paz, Glenn Greenwald, não
saberíamos hoje quão vulnerável é a democracia representativa e o sistema
jurídico-judicial que a sustenta. Ao longo deste processo também ficamos a
saber que a mídia hegemônica, tal como os magistrados dirigentes da Lava
Jato, não rejeitam meio algum para defender os interesses de que são
servidores fieis. A demonização de Lula
da Silva e do PT é uma
das páginas mais vergonhosas do jornalismo hegemônico brasileiro (mídia
tradicional).
Passemos
aos desafios a serem enfrentados pela sociedade brasileira
1. Tenho defendido a urgência de o sistema judicial brasileiro
repor a sua credibilidade. A decisão do STF foi um passo importante, mas
não basta. Sérgio Moro e Deltan Dallagnol cometeram ilegalidades disciplinares
e mesmo criminais, que devem ser punidas. Todo o sistema de controle
disciplinar dos magistrados tem de ser revisto, sobretudo a promiscuidade entre
juízes e procuradores. São necessárias reformas no processo penal, e o modo arbitrário
como é usada a delação premiada tem de ser eliminado, uma vez que representa a
emergência do direito penal do inimigo próprio dos regimes totalitários. É
urgente uma reforma profunda da formação dos magistrados nas faculdades de
direito e nas escolas da magistratura.
2. O neoliberalismo
e o autoritarismo estão longe de
ser derrotados. Pelo contrário, a entrega dos recursos estratégicos do Brasil,
incluindo a base de Alcântara está
ainda em curso e as medidas austeritárias ainda não foram aplicadas em toda a
sua extensão. A libertação de Lula da Silva é ela também um processo,
uma vez que só será definitiva depois de se declarar a suspeição do juiz Sérgio Moro que é hoje óbvia e de
serem arquivadas ou processadas outras acusações que integram a lawfare (o uso
do direito para liquidar adversários políticos) contra Lula da Silva. O próximo período vai ser um período de
radicalização política, muito longe da conciliação de classes com que sempre
sonhou Lula.
3. Os movimentos sociais sabem
hoje que foram desarmados durante algum tempo pelo próprio governo do PT, na medida em que julgaram que ter
um “amigo no Palácio do Planalto” era suficiente para garantir a realização das
suas demandas. Obviamente que ajudava, mas não era suficiente. O movimento
indígena sabe isso melhor que nenhum outro porque a sua
experiência de opressão e resistência é maior que a de qualquer outro movimento
social. Lula da Silva em
liberdade é uma ajuda preciosa, mas ele não é, nem quer ser, nem poderia ser, o
salvador da pátria, capaz de a resgatar por si só contra ventos e marés. Lula,
aliás, reconhece hoje que, enquanto presidente, fez demasiadas cedências aos
donos do poder, os quais afinal nem sequer lhe foram gratos. Bem pelo
contrário. Os próximos tempos vão mostrar aos movimentos sociais que as lutas
mais duras estão por vir.
4. Lula não é dono do seu futuro, mas
certamente procurará administrá-lo da melhor maneira para a democracia brasileira. A um político
que insistentemente afirma “ter o tesão de vinte anos, a energia de trinta e a
experiência de setenta”, o futuro está plenamente aberto. Obviamente que não
depende só dele. Se a lawfare contra ele for
neutralizada, Lula da Silva
poderia ser o candidato da esquerda nas eleições presidenciais de 2022. Duvido,
no entanto, que o queira ser. Aliás, a experiência de grandes presidentes
que, por várias vias, quiseram permanecer ou voltar ao poder não é brilhante.
Tenha-se em mente Hugo Chávez, Mário Soares,
Daniel Ortega, Abdelaziz Bouteflika ou, mais
recentemente, Evo Morales que no
momento em que escrevo é vítima de um golpe de Estado, devido a uma mistura
tóxica de erros próprios e da intervenção norte-americana através da OEA,
Organização dos Estados Americanos.
Acresce que as condições em que Lula da Silva governou já não existem
nem voltarão a existir nos tempos mais próximos. Lula da Silva continua a
dirigir-se aos brasileiros, mas sabe hoje que muitos só o amaram enquanto
mamaram nas vantagens de seu governo. Por outro lado, Lula da Silva tem afirmado que é hoje
mais de esquerda do que anteriormente. Isto significa que as suas imensas
qualidades de articulação e de conciliação devem agora ser canalizadas, não
para a sociedade brasileira no seu conjunto, como se fosse um povo homogêneo,
mas antes para as classes populares pobres e classes médias empobrecidas e para
as esquerdas que pretendem defender os interesses destas classes, tantas vezes
vítimas de misturas tóxicas de capitalismo com desemprego de longa
duração, trabalho sem direitos, uberização, colonialismo através do
racismo, usurpação e concentração neocoloniais de terra e patriarcado pelo
sexismo e homofobia. Será o articulador ideal no sentido de lhes conferir
confiança e esperança, de lhes dar visão simultaneamente utópica e pragmática
de um futuro melhor, de as ajudar a superar diferenças que, sendo na aparência
ideológicas e profundas, são muitas vezes mesquinhas e oportunistas. E,
sobretudo, de as ensinar a comunicar com as classes populares, a entender as
suas angústias e expectativas que tão perdulariamente foram deixadas à
doutrinação interesseira de pregadores reacionários e neofascistas de
ocasião ou de convicção.
* Boaventura de
Sousa Santos, sociólogo português, em artigo publicado no site Outras
Palavras
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/594326-boaventura-ve-lula-livre
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