No período intenso que promete
se abrir no Brasil, o exemplo do Chile é inspirador. E a tramitação, no
Congresso, do pacote de PECs de Bolsonaro e Paulo Guedes pode ser um momento de
virada. Elas são tão abertamente antissociais, e seu fundamentalismo está tão
em desacordo até mesmo com o pensamento mais pragmático de outros líderes de
direita (no Reino Unido, Boris Johnson propõe o fim da “austeridade”; no
próprio Chile, depois de pressionado, Piñera tentou calar os protestos com um
“pacote social”)...
por Antonio
Martins no site OUTRASPALAVRAS - Sociedade e Disputa Popular por Liberdades na América
Latina
Imagem: Emil Nolde, “Soldados” (1913)
Última lição do
dia: os homens, eles voltam sempre. É preciso estar sempre de olhos abertos… Na peça Os
Saltimbancos, recriada por Chico Buarque, o aviso é dado pelo Jumento,
personagem de fina inteligência. Os Bichos espantaram os Barões e têm, enfim,
onde dormir. Mas ainda não podem descansar em paz, porque prepara-se a
revanche. Na América Latina, um Outubro
Rebelde abalou os governos neoliberais do Chile e do
Equador, destronou Maurício Macri na Argentina e continua a sacudir o Haiti.
Novembro, porém, começou em refrega. Na Bolívia, um golpe militar que estava em
fermentação desde 23 de outubro derrubou ontem Evo Morales, seu vice, a
presidente do Senado e o da Câmara. Gravações vazadas pelo jornal El Periodico (e
reproduzidas no Brasil pela revista Fórum)
indicam que em sua preparação participaram assessores de Jair Bolsonaro e
senadores norte-americanos. Agora, o país está acéfalo, aterrorizado por
milícias. Dois governadores, um ministro e a irmã do presidente tiveram
suas casas queimadas.
Meios de comunicação independentes foram atacados e
tirados do ar. Num dos episódios, José Aramayo, diretor de rádio
ligada à Confederação dos Trabalhadores Camponeses, foi amarrado a uma
árvore. A Patricia Arce, prefeita de Vinto, na região de
Cochabamba, rasparam os
cabelos, pintaram o corpo de vermelho e fizeram caminhar sob insultos
proferidos por homens.
Ao Brasil, cuja
importância geopolítica é incomparável, a orientação foi dada pelo próprio
Steve Bannon, principal ideólogo e articulador da onda protofascista.
Inconformado com a libertação de Lula, ele propôs no sábado, em entrevista à BBC,
que os partidários de Bolsonaro se aproveitem do fato para acirrar a
polarização e “empurrar a agenda de reformas com um senso extra de urgência”.
Contudo, advertiu que isso deveria ser apresentado não por meio da defesa
explícita das propostas, mas como um movimento em favor do combate à corrupção
e ao sistema político. Dito e feito. Ainda ontem (10/11), revela a Folha
de S.Paulo, Bolsonaro alterou sua tática inicial diante de Lula – que
era manter relativo silêncio. Decidiu encarregar Sérgio Moro de lançar campanha
para que o Congresso restabeleça, por meio de Emenda Constitucional, a prisão
dos réus, após condenação segunda instância.
No mesmo domingo,
porém, vinha do Chile um sinal de sentido oposto. Incapaz de frear os protestos
contra seu governo (houve nova
manifestação gigante na sexta-feira, 8/nov), o presidente Sebastián
Piñera sinalizava que aceitará a convocação de um
“Congresso Constituinte”. Embora nenhuma informação adicional tenha
sido dada, o ato expressa clara vitória de uma revolta popular reprimida
com selvageria. Poderá significar forte pressão contra o projeto neoliberal,
num país que era há pouco visto como sua “vitrine”.
Figura do Celag na internet
A América Latina continua
instável e, em certa medida, imprevisível. Até outubro, a região era marcada
pelo avanço de uma onda conservadora em que se somam correntes
ultracapitalistas e protofascistas. No mês passado, uma sucessão revoltas
populares e resultados eleitorais – em especial o da Argentina – interrompeu
a maré e criou uma situação de impasse. Agora, vem a ressaca. A
região parece transformar-se num palco crucial para a disputa entre a
ultradireita e os que buscam, diante da crise civilizatória, alternativas
humanizadoras. O Brasil será certamente centro deste embate – em especial após
as esperanças e ódios despertados pela libertação de Lula. Eis, com base nos fatos mais
recentes, quatro hipóteses para examinar o novo cenário.
As ruas, e não as instituições, estão se tornando o
palco central da disputa:
Atente à
contradição. Na Bolívia, um dos governos mais comprometidos com mudanças
estruturais na América do Sul caiu ontem, por ser incapaz de mobilizar as
maiorias contra os bandos fascistas e a polícia, convertida em força pelo
golpe. Mas no Chile, governado por um ultracapitalista, nem ele, nem os tanques
do exército e o toque de recolher, nem a morte de 20 manifestantes pelo
exército e os carabineros foram capazes de frear o ascenso de
um movimento que contesta frontalmente o projeto neoliberal.
A América Latina
parece viver um período raro, em que as ruas adquirem força política. Estão em
disputa, em todo o mundo – atente também à Catalunha, à Argélia, ao Egito, ao
Líbano, a Hong Kong. São voláteis. Como a velha ordem capitalista deixou de
produzir estabilidade, radicalizam-se e perdem o medo. É arriscado confiar nas
instituições para controlá-las. Um texto publicado por El País no
domingo relata o importante
trabalho político realizado junto aos comandantes do exército,
ao longo de anos, por Evo Morales. Reunia-se com eles uma vez por semana.
Participava constantemente de suas cerimônias. Estimulou-os a criar empresas
militares. Julgava-se seguro. Mas seu apoio castrense esvaiu-se em dias, após
uma combinação de pressões
norte-americanas e protestos de rua. Os avanços sociais
e econômicos da Bolívia, em 13 anos de Evo, são inegáveis. Mas
não bastaram nem para refrear os preconceitos das elites contra o presidente
indígena, nem para constituir, entre as maiorias, um movimento capaz de
defendê-lo permanentemente. As causas precisam ser examinadas sem precipitação
– mas a derrota, também nas ruas, é clara.
É preciso impedir
que a ultradireita apresente-se como antissistema:
Do ponto de vista
de seus interesses, Steve Bannon está coberto de razão, quando orienta a
ultradireita brasileira a erguer as bandeiras da luta contra a corrupção e
o establishment. Ele tenta, há anos, ocupar um vazio político real
e muito potente – ao qual a esquerda demora a atentar. O sistema político está
em crise, em todo o mundo. As maiorias sentem-se abandonadas por ele, pois a
desigualdade tornou-se acintosa, as condições de vida das maiorias
deterioram-se e a democracia, sequestrada pelo poder econômico, não oferece
alternativas.
Descrita por Serge
Halimi e Pierre Rimbert num texto essencial para
compreender as novas condições da disputa política, a manipulação articulada
por Bannon é notável. Ela permitiu, a dezenas de partidos de ultradireita em
todo o mundo, muitos dos quais sequer existiam antes da crise de 2008, capturar o
ressentimento decorrente destas frustrações. Para fazê-lo, desviam o foco.
Jamais atacam a ditadura financeira, que produz a concentração brutal de
riquezas e o esvaziamento da democracia. Voltam seu eleitorado suscetível
contra uma suposta “elite” – composta pelos mais letrados; pelos que expressam
etnias, culturas, religiões, sexualidades ou padrões morais não-hegemônicos;
pelos que podem ser apontados como politicamente desviantes.
Mas esta
manipulação só tem sido possível graças ao espaço aberto pela esquerda.
Incapazes até o momento – em quase todos os países – de dialogar com o legítimo
sentimento antissistema que cresce entre as multidões, os partidos
progressistas travestem-se de defensores das instituições. Não percebem que já
não se trata apenas de defender a velha democracia, mas
de resgatá-la e reinventá-la. Fazem-no,
muitas vezes, porque mergulharam tão profundamente no aparelho de Estado que
são incapazes de enxergar uma política da mobilização social.
O resultado é
trágico, como mostra todo o processo que levou ao impeachment de Dilma Rousseff
no Brasil. A situação é bastante distinta hoje, no Brasil. Mas não se deve
desprezar o bolsonarismo – que criou uma importante legião de apoiadores,
uma milícia digital eficiente
para mantê-los mobilizados e um imaginário político primitivo e retrógrado que
lhes serve de horizonte.
A força da ultradireita – sua aliança com o
neoliberalismo – pode ser seu desastre
No Brasil, ao contrário do que
ocorreu a partir de 2015, a luta contra a ultradireita pode tirar proveito de
um enorme trunfo. O país é governado há mais de três anos por uma coalizão de
forças golpistas e conservadoras. As condições de vida agravaram-se. Direitos
sociais foram suprimidos e serviços públicos regrediram. Nenhuma das promessas de geração
de mais ocupações cumpriu-se. E o governo acaba de apresentar três Propostas
de Emendas Constitucionais (PECs) que poderão tornar tudo ainda
mais dramático. Os salários dos
servidores poderão ser congelados ou
mesmo reduzidos – diminuindo-se também as horas de atendimento
aos usuários. Direitos sociais como licença-maternidade, auxílio-doença e
outros estão sujeitos à
interrupção. Fundos sociais – que financiam a Educação ou a Ciência
e Tecnologia – serão extintos. Um em cada cinco municípios pode ser fechado.
O pacote deve-se à
aliança com os neoliberais. Até agora, ela tem sido a fortaleza da
ultradireita. Pode, porém, esvaziar seu discurso e levá-la ao desastre. Entre
os benefícios de que estas duas forças se aproveitam, ao atuar em frente, está
a blindagem mútua. Nenhum presidente que pratica atos ou faz declarações como
as de Bolsonaro poderia manter-se à frente do governo, se não fosse o executor
do programa que os ultracapitalistas querem impor ao país. E este projeto, por
sua vez, seria irrealizável sem o apoio de um político capaz não apenas de
vencer as eleições – mas de impor medidas antipopulares enquanto desvia a
atenção da sociedade para temas menores.
Mas a vantagem
desta aliança transforma-se num estorvo e num fator de crise quando seus
objetivos reais aparecem sem máscara. Por que os apoiadores de Bolsonaro,
atraídos pelo discurso em favor de “Saúde e Educação padrão FIFA”, precisam
defender o corte drástico dos recursos para estas duas áreas? Aqui, o caso do
Chile merece um exame especial. A mobilização que abalou Piñera foi possível
porque houve, antes, campanhas intensas contra as políticas neoliberais.
Surgiram, ao longo de mais de uma década, coalizões contra a entrega do
abastecimento de água a transnacionais, o sistema privado de aposentadorias, a
crise da Educação, o péssimo atendimento à Saúde, o altíssimo custo de vida. A
alta dos preços das passagens de metrô foi apenas o estopim. Quando deu-se a
explosão, o acúmulo de consciência e organização pré-existente tornou possível
politizar a revolta rapidamente, formular um conjunto claro e conciso de
reivindicações, torná-lo popular entre a sociedade.
No período intenso que promete
se abrir no Brasil, o exemplo é inspirador. E a tramitação, no Congresso, do
pacote de PECs de Bolsonaro e Paulo Guedes pode ser um momento de virada. Elas
são tão abertamente antissociais, e seu fundamentalismo está tão em desacordo
até mesmo com o pensamento mais pragmático de outros líderes de direita (no
Reino Unido, Boris Johnson propõe o fim da “austeridade”; no próprio Chile,
depois de pressionado, Piñera tentou calar os protestos com um “pacote social”) que valeria pensar na
hipótese de um combate mais radical contra elas. Em vez de buscar emendá-las,
como fez na votação da contrarreforma da Previdência, a oposição poderia pensar
em rechaçá-las em bloco; e em propor um conjunto de medidas alternativas; e em
abrir uma disputa de projeto contra projeto, para os serviços públicos do
Estado brasileiro.
Em vez da nostalgia dos “bons tempos”, é preciso um
novo programa
Ao analisar, no
sábado (8/nov), as consequências políticas da libertação de Lula, o filósofo Marcos
Nobre chamou a atenção,
entre outros, para dois pontos. Livre, o ex-presidente tirará, quase
automaticamente, a esquerda e o PT de uma postura puramente defensiva. Para
contrapor-se a Bolsonaro, já não poderá reclamar a liberdade – terá de
apresentar ideias de país. Espera-se, completou Nobre, que, ao contrário do que
ocorreu em 2018, estas ideias não sejam apenas a evocação aos “bons tempos dos
governos petistas” – mas, principalmente, uma visão distinta sobre os desafios
que o Brasil enfrenta agora. Uma visão semelhante tem sido
sustentada com insistência em Outras Palavras. Não basta falar
aos já convencidos da capacidade da esquerda; nem ocultar que o projeto adotado
nos governos Lula e Dilma entrou em crise já em 2013 e não pode ser repetido.
Ao falar a
milhares apoiadores em São Bernardo, no mesmo sábado, Lula colocou de fato a
esquerda em outro patamar. Suas críticas a Paulo Guedes – muito mais que as
feitas a Moro – indicam que enxerga a fragilidade central do governo Bolsonaro.
Sua alusão a temas que angustiam as maiorias, mas são frequentemente ocultados
do debate público (por exemplo, a captura da riqueza nacional pelo sistema financeiro;
o drama das dezenas de milhões de endividados) mostra que a sensibilidade, uma
de suas grandes virtudes, continua presente e afiada.
Lula parece
disposto a partir, agora, para uma caravana pessoal pelo país, em grandes atos,
cujo objetivo seria resistir e passar à ofensiva. A princípio, parece ótimo.
Quebrar a ausência de oposição, que persiste há tanto tempo, é, mais que nunca,
bem-vindo. Mas talvez também esteja presente, na iniciativa, o risco ao qual
Nobre alude.
O protagonismo
pessoal do ex-presidente é uma força extraordinária e pode ser ainda mais
imprescindível em tempos muito difíceis. Não seria conveniente, por isso mesmo,
que ele estivesse articulado com um esforço mais coletivo de superação do
labirinto em que nos perdemos? Que pudesse atrair outros sujeitos e outros
públicos, além dos que desejariam a volta dos governos de Lula? Por exemplo, os
partidos que, à esquerda, têm projetos distintos dos do PT. Ou os movimentos
que propõem novos paradigmas de desenvolvimento; ou julgam insuficientes as
“reformas fracas” que o lulismo promoveu em seu período. Não será possível
abrir, em mobilização e nas ruas, um novo processo de resistência e de
construção de alternativas, que vá além da reivindicação do passado pré-2016?
Imagem na internet: criança geopolítica observando o nascimento de novo homem
Rebeliões. Golpes. Disputa acirrada pelas
ruas. Imprevisibilidade. Numa América Latina em que as perspectivas pareciam
tão estreitas, há apenas 40 dias, o futuro está de novo em aberto. Será um
prazer acompanhar os fatos novos e deixar a condição de espectadores passivos
de nossa tragédia.
https://outraspalavras.net/estadoemdisputa/america-latina-a-ultradireita-contra-ataca/
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