Nunca é
demais repetir: reduzir a pobreza e as desigualdades não é apenas um imperativo
moral. É um caminho eficaz para elevar a produtividade e impulsionar um
crescimento mais vigoroso e, principalmente, mais sustentável
por José Paulo Kupfer no Poder360 e Vermelho – Sociedade
e Combate a Desigualdade de Renda
Imagem no site Vermelho
A
pandemia escancarou as mazelas sociais brasileiras. Já eram fraturas expostas,
mas, naturalizadas e invisíveis para muitos, permaneciam nos subterrâneos da
sociedade. O colapso geral da renda causada pela paralisação abrupta da
atividade econômica trouxe à tona o gigantesco exército de vulneráveis que
sobrevivia em situação precária.
Na
situação extraordinária da pandemia, enquanto o governo e seu ministro da
Economia vacilavam, o Congresso, puxado pela Câmara dos Deputados, aprovou um
auxílio de emergência temporário, no valor de R$ 600, com alguns critérios de
seleção de beneficiários. Cálculos mais atualizados da IFI (Instituição Fiscal
Independente), órgão vinculado ao Senado Federal, apontam 80 milhões de pessoas
beneficiadas, a um custo total de R$ 155 bilhões.
O auxílio
funcionou, apesar da demora em cadastrar as pessoas, das falhas de cadastro
que, de um lado, deixaram de ser elegíveis e, de outro, acolheram inscrição de
quem não teria direito, inclusive militares e pessoas de classe média, e dos
atrasos na liberação dos recursos. Funcionou não só para mitigar as
dificuldades de quem precisava ser atendido, mas também para, segundo pesquisas,
ampliar a aprovação do governo e do presidente Bolsonaro entre os
beneficiários.
Tudo
junto e misturado resultou na quase certeza de que, no mínimo, o auxílio será
prorrogado. E aí começaram os problemas. O ministro Paulo Guedes quer
prorrogá-lo por apenas 2 meses e reduzir o valor pelo menos para a metade. Há
ainda quem aceite que o auxílio seja estendido até o fim do ano, quando,
presumem seus defensores, a pandemia já estaria sob controle.
Mas a
experiência desses primeiros 3 meses, a perspectiva de melhoria e ampliação do
Cadastro Único, que reúne e organiza informações e localização de pobres e
muito pobres, sob a pressão do momento, e os evidentes bons resultados do
auxílio tiveram o condão de abrir uma avenida para o debate da ideia de uma renda
básica permanente. Diversas propostas subiram na mesa e, com elas, logicamente,
as questões relativas a seus custos e formas de financiamento.
Com a
rapidez imposta pelos novos e dramáticos tempos, foram surgindo respostas para
essas questões. Está claro que programas de renda básica permanente têm custos
e que esses custos são maiores ou menores dependendo dos limites mais ou menos
abertos para determinar o contingente de elegíveis.
O leque
de alternativas já conhecidas também é amplo. Vai de uma renda básica para
todos os brasileiros, que custaria por ano a enormidade de 15% do PIB, até um
programa focado em crianças e adolescentes, estrato em que se encontram 70% dos
pobres brasileiros, com custo mais moderado de 1% a 1,5% do PIB ao ano.
Financiar
qualquer um desses programas, contudo, não dispensará um aumento de carga
tributária. Diante das restrições fiscais existentes, sem pressionar em excesso
a dívida pública, não será possível bancar uma renda básica permanente sem
aumento da receita tributária.
Cortes de
outras despesas, incorporação ou eliminação de programas existentes que possam
ficar sobrepostos, recalibragem de subsídios, melhora da arrecadação propiciada
pela maior circulação de renda, tudo isso pode ajudar. Mas seria insuficiente.
Pode parecer
surpreendente, mas o fato é que a urgência do momento parece ter contribuído
para acelerar a busca de um consenso em relação a esse ponto clássico da
resistência brasileira a distribuir renda. Como ficou difícil defender a
desnecessidade de uma atuação afirmativa para eliminar a pobreza absoluta,
mitigar a pobreza e reduzir as inacreditáveis desigualdades de renda (e
oportunidades), restaram poucos espaços para evitar discutir alternativas
capazes de reorganizar o sistema tributário numa direção mais progressiva.
É hora,
portanto, de jogar luzes sobre o mito da elevada carga tributária brasileira. A
começar da decomposição do conjunto agregado, que serve para escamotear a
verdade de uma carga tributária média realmente mais alta do que nos países de renda
per capita semelhante, mas concentrada nos que menos podem contribuir. Aquela
história de que os brasileiros trabalham 4 meses do ano só para pagar impostos
é uma balela retórica. Se for ver quem paga imposto mesmo no Brasil, ficará
claro que tem quem trabalhe mais tempo do que isso, e, em geral, é gente menos
rica. E tem quem trabalhe bem menos, o grosso no grupo de maiores posses.
É notório
que o sistema tributário brasileiro taxa mais quem pode menos, primeiro por
tributar mais o consumo do que a renda e o patrimônio, e depois por isentar,
subsidiar ou permitir abatimentos para certos tipos de rendimentos e riqueza.
Difícil acreditar, mas a verdade é que, no Brasil, quem ganha até 2 salários
mínimos é taxado no equivalente à metade de sua renda, enquanto quem ganha mais
de 30 salários mínimos é tributado no equivalente a 1/4 de seus rendimentos.
O total
de gastos tributários previstos para 2020 dá uma ideia de que a carga de
impostos não é tão alta para muitos detentores das maiores rendas. São R$ 330
bilhões, o equivalente a 4,34% do PIB e a 1/5 da arrecadação federal. Se nem
todas essas renúncias tributárias são elimináveis e existam casos que cumpram a
função para a qual foram previstos, uma grande parte é desnecessária ou não
passa de desperdício, não resultando no pretendido.
O caso
mais notório é o do Simples, sistema que reduz substancialmente a carga de
impostos de empresas pequenas e médias, sob o pretenso objetivo de reduzir a
burocracia do pagamento de tributos e, assim, incentivar a formalização de
empreendimentos. A um custo anual (previsão para 2020) de R$ 83,2 bilhões,
equivalente a 1% do PIB, 5,5% do total da arrecadação federal e 1/4 de todas as
renúncias tributárias, o Simples é um ônus pago pela sociedade para gerar
ineficiências.
O desenho
do Simples desestimula o aumento do porte das empresas, e, ao contrário,
incentiva a pulverização de negócios, visto que a partir de um faturamento
anual acima de R$ 4,8 milhões, a empresa perde o benefício. O Simples também dá
passagem a uma avalanche de “PJs”, pessoas físicas que abrem empresas sem
funcionários apenas para ter acesso ao benefício tributário, vestindo a
fantasia de pessoas jurídicas. Se fossem empregados, provavelmente pagariam
imposto de renda à alíquota máxima de 27,5%, mas como PJs, optantes pelo
Simples, recolhem, pelo mesmo tipo de trabalho, de 4% a 10% dos rendimentos
contabilizados como faturamento.
Isenção
de lucros e dividendos, abatimento de despesas pessoais e de dependentes, assim
como outros subsídios no IR da pessoa física, somam, na previsão para 2020, um
total de R$ 56,7 bilhões em renúncias fiscais. Estudos recentes mostram que com
a redução de renúncias no IR da pessoa física, o aumento da taxação nas faixas
mais altas de renda, e a revisão na tributação de patrimônio permitiriam
arrecadar 1,5% do PIB por ano, cerca de R$ 100 bilhões, a mais do que é
recolhido.
Nos
últimos dias, sentindo a onda irresistível em favor de uma ampliação dos
programas sociais —e de olho nos possíveis ganhos eleitorais que podem
propiciar— o governo, pela palavra de Paulo Guedes, achou por bem jogar uma
cortina de fumaça no ambiente. O ministro acionou seu incansável departamento
de marketing e anunciou vagos “estudos” para a criação de um programa de renda
básica, com o nome de Renda Brasil, que substituiria o Bolsa Família e outros.
Pelas
histórias pregressas, pouco provável que essa conversa avance. Felizmente, os
debates sobre uma renda básica, não concorrente com o Bolsa Família, que
elimine a extrema pobreza, ataque a vergonhosa pobreza e as chocantes
desigualdades brasileiras, amadurece com rapidez. Eis uma chance que não
deveria ser desperdiçada, ainda que seja necessário aumentar a tributação sobre
quem mais pode e até hoje menos contribui.
Nunca é
demais repetir: reduzir a pobreza e as desigualdades não é apenas um imperativo
moral. É um caminho eficaz para elevar a produtividade e impulsionar um
crescimento mais vigoroso e, principalmente, mais sustentável.
Publicado no Vermelho: 12/06/2020 15:05
Fonte: https://vermelho.org.br/2020/06/12/taxar-quem-pode-mais-para-custear-renda-basica-e-bom-para-o-brasil/
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