“Algo que nós sempre enfatizamos na proposta ecossocialista é que o
objetivo deve ser reconciliar a sociedade humana com a natureza, mas essa é uma
tarefa difícil, porque essa reconciliação não é mera questão de vontade para a
maioria. Vejamos as periferias das grandes cidades do Brasil: a poluição local
é um problema da estrutura desigual de saneamento e planejamento urbano
inadequado ou nulo.”, diz Sabrina Fernandes
por Giovanna Galvani * na Carta
Capital – Sociedade e Sustentabilidade
na Terra Pós-Covid 19
Foto:
Charly Triballeau/AFP
O clima
lá fora não é dos melhores, mas há quem repare em céus mais limpos. Não é só
por aqui: imagens de raros canais transparentes na turística Veneza, na Itália,
e volta de tartarugas marinhas raras que conseguiram se reproduzir em praias da
Tailândia são bons exemplos sobre como o impacto humano no meio ambiente
poderia ser diferente caso houvesse conscientização sobre o uso dos recursos
naturais, correto?
Não tão
rápido. Mesmo com exemplos pontuais ou previsões de quedas históricas na
emissão de carbono devido ao confinamento, especialistas temem que o mundo
pós-pandemia encontre nas soluções mais poluidoras a saída para o entrave
econômico que o coronavírus trouxe para um mundo, e a superficial consciência
solidária e ecológica gerada pelo #FiqueEmCasa se esvaia.
Pode
parecer um assunto para depois, mas o acompanhamento das emissões e da
qualidade do ar, no aspecto regional, está diretamente relacionado ao sistema
de saúde das cidades – sobrecarregado por conta dos pacientes com covid-19.
O
climatologista Carlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade
de São Paulo (USP), uma das referências mundiais na pesquisa sobre as mudanças
climáticas, explica que em São Paulo, por exemplo, está para entrar no seu
período de secas do inverno – o que agrava problemas respiratórios crônicos,
como bronquite e asma, comorbidades perigosas no contexto da pandemia. Analisar
ao nível de poluição do ar da metrópole seria avisar o poder público de que
mais problemas podem vir caso haja uma flexibilização inconsequente da
quarentena.
“A continuidade
do confinamento e uma efetiva diminuição da circulação de veículos vai manter
níveis de poluição do ar mais baixas, diminuindo o número de pessoas tendo
crises asmáticas e de doenças respiratórias. Isso não somente diminui a
saturação dos hospitais, mas principalmente diminui o próprio risco de pessoas
com tais problemas serem infectadas pela covid-19”, explica Nobre.
Na
análise de pandemia e clima, o pesquisador afirma que, no momento, os
cientistas se debruçam sobre a queda generalizada da emissão de gases de efeito
estufa no mundo – em especial o dióxido de carbono (CO2).
“Há
estimativas que este ano globalmente as emissões serão reduzidas em 8% em
relação ao ano de 2019. Para o Brasil, a queda de emissão de CO2 pode ser até
maior, uma vez que o setor de transportes (principalmente queima de óleo diesel
e gasolina) corresponde a mais da metade de todas as emissões deste setor.”,
analisa Nobre.
Se o
confinamento traz impactos visíveis em um tempo relativamente curto, o seu
oposto também ajuda a explicar como que as alterações nas paisagens visíveis e
nos indicadores de emissões de gases invisíveis mudam a dinâmica da vida no
planeta. Isso, por si só, nos aproxima da explicação sobre a origem de
pandemias como a do coronavírus.
Na esquerda, canais de Veneza
aparecem translúcidos após cidade entrar em quarentena. Segundo especialistas,
o lodo do Grande Canal de Veneza assentou com a menor movimentação de barcos.
Na direita, tartarugas marinhas raras se reproduziram naturalmente na Tailândia
– algo impensável com a presença de turistas (Fotos: Andrea Pattato/AFP e Mai
Thao Marine Foundation/Facebook)
Quem
traça o cenário é o pesquisador em ecologia e evolução e professor doutor no
instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Mathias
Mistretta.
“Essa
pandemia, como todas as outras doenças infecciosas que assolaram a humanidade,
têm origem zoonótica – isto é, são patógenos de outros animais. À medida que os
ambientes naturais são modificados e substituídos por outras formas de uso da
terra, amplia-se o contato com animais silvestres, enquanto outros acabam se
aproximando dos ambientes urbanos, o que também aumenta as chances de
transmissão de alguma doença.”, explica o ecólogo.
Tal
compreensão tem sido abordada com frequência pelos cientistas quando eles
tentam explicar a origem da pandemia. Mesmo assim, entender que o uso
exploratório da terra por meio dos latifúndios do agronegócio ou a queima de
combustíveis fósseis constituem os verdadeiros inimigos não se tornou mais
simples com a reclusão em casa.
Na visão
da pesquisadora em sociologia ambiental Sabrina Fernandes, uma perspectiva de
vida com preceitos sustentáveis ainda está longe de ser unanimidade, mesmo com
exemplos práticos da interferência predatória na natureza em tempos de
coronavírus.
“É
possível que algumas pessoas reflitam sobre o impacto da vida ‘normal’, mas
como o contexto é de crise, a tendência é que logo o apelo para recuperar a
economia e retomar atividades nas cidades atropele a maior parte dessa
consciência adquirida.”, analisa.
É o que
aponta uma triste realidade, localizada às margens do Rio Doce – morto pela
lama da mineração após o rompimento da barragem de Mariana (MG), em 2015. Lá,
130 famílias “estão isoladas há quatro anos”, apesar de encararem, agora, o
perigo extra do inimigo externo.
Quem
define essa situação é o ambientalista e escritor Ailton Krenak, uma das
maiores lideranças indígenas no Brasil. Krenak analisa que a pandemia é fator
inédito, mas falsas promessas de uma nova consciência após uma tragédia constam
do século passado. O mundo pós-pandêmico, para ele, não promete ser muito
diferente do que já provou ser.
“Eu estou
completando dois meses em uma quarentena na aldeia Krenak, nas margens do Rio
Doce, o rio que foi flagelado pela lama da Samarco. Nós somos abastecidos por
caminhão-pipa e supridos por cestas básicas. Você pode ver que o mundo não está
nem aí. Quem veio aqui socorrer as comunidades ribeirinhas depois da Vale?
Quantos acionistas da Vale mandaram grana para cá? É na prática que a gente
testa essa conversa fiada de solidariedade.”.
Recuperação verde?
Apesar
dos maus agouros colhidos na história, autoridades europeias e chinesas
realizaram uma cúpula climática online no fim de abril para cobrar que os
países signatários do Acordo de Paris, firmado na COP-21 em 2015, respeitem o
compromisso de buscar por um “desenvolvimento verde” na recuperação econômica
de seus países.
“Haverá
um debate difícil sobre a alocação de fundos. Mas é importante que os programas
de recuperação estejam sempre de olho no clima. Não devemos deixar de lado o
clima, mas sim investir em tecnologias climáticas”, disse Angela Merkel,
chanceler alemã, na conferência online com a mediação das Nações Unidas.
No
entanto, sobra ceticismo ao se tratar do assunto – especialmente em relação a
nações com líderes negacionistas da emergência climática. Nessa lista, estão o
presidente americano Donald Trump e, claro, Jair Bolsonaro.
No
Brasil, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sequer esperou pelo fim da
pandemia para assinar decretos que colocam a Amazônia e a Mata Atlântica em perigo, entregando áreas para grileiros. Os avisos de desmatamento
recorde na Amazônia no primeiro trimestre do ano são as primeiras marcas de
“cicatrizes muito mais duradouras” para uma perspectiva sustentável, diz
Mathias Mistretta.
“Os alertas indicam que 2020 pode ser um ano ainda pior em termos de
desmatamento e, possivelmente, de incêndios. Uma hora a pandemia vai ser superada,
apesar dos traumas, mas algumas cicatrizes são muito mais duradouras, pois
ambientes naturais como as florestas não se recuperam de uma hora para a
outra.”, opina Mathias Mistretta.
Na visão
de Carlos Nobre, que estuda a biodiversidade da Amazônia ao longo de toda sua
carreira, o mundo todo encontra-se diante de uma “encruzilhada decisiva”.
Assim, enveredar pela destruição das florestas e biodiversidade e pela emissão
de mais gases poluentes pode nos levar ao mesmo ponto da suposta “nova
largada”.
Foto: Felipe Werneck/Ibama
“Não
tenho dúvida que a crise climática, se não contida urgentemente, trará desafios
incomensuráveis a todas as sociedades humanas por séculos a vir. Traz riscos,
inclusive, de modificar o equilíbrio ecológico de inúmeros ecossistemas,
principalmente as florestas tropicais, o permafrost, entre outros, expondo
muito mais a raça humana ao contato com patógenos que fariam surgir
pandemias.”, explica.
Nobre
destaca que essa mudança passa, também, pela criação de “condições plenas de
saúde e educação” para todos – um desafio que, para Sabrina Fernandes, carrega
um teor pessimista sobre adquirir, de fato, uma consciência climática em face
da desigualdade e pobreza.
“Algo que nós sempre enfatizamos
na proposta ecossocialista é que o objetivo deve ser reconciliar a sociedade
humana com a natureza, mas essa é uma tarefa difícil, porque essa reconciliação
não é mera questão de vontade para a maioria. Vejamos as periferias das grandes
cidades do Brasil: a poluição local é um problema da estrutura desigual de
saneamento e planejamento urbano inadequado ou nulo.”, diz.
Apesar de
descrente de um movimento sério de solidariedade ambientalista, Ailton Krenak
acredita que o pós-pandemia irá colocar à prova o quanto que céus mais azuis,
canais turísticos translúcidos e bebês tartaruga sensibilizaram, de fato, um
mundo anestesiado pelo coronavírus.
“Se o
mundo sair acelerando com ideia de recuperar o que perdeu, seria a constatação
de que a mortandade que está havendo no planeta não tocou a sensibilidade desse
mundo que nós vivemos e insistem em chamar de humanidade.”
Publicação na Carta Capital: 20 de maio de 2020
*Giovanna Galvani
Fonte:
https://www.cartacapital.com.br/sustentabilidade/encruzilhada-decisiva-o-que-o-clima-do-planeta-tem-a-ver-com-a-pandemia/
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O comentário será analisado para eventual publicação no blog