Os EUA estão envolvidos em uma nova guerra, no território da Ucrânia, sem conseguir definir de forma clara quais são seus objetivos neste conflito, nem têm a menor possibilidade de alcançar uma vitória definitiva no campo de batalha, sem passar por uma guerra direta com a maior potência atômica do planeta
“...o acordo negociado pela China afasta os Estados Unidos do Oriente
Médio e anuncia a chegada da influência chinesa sem nenhuma nova guerra, pelo
contrário, através de uma diplomacia da paz, que se soma ao Plano de Paz de 12
pontos apresentado pela China aos governos da Rússia e da Ucrânia...”
por José Luís Fiori* no Brasil 24/7 – Sociedade e o
G7 em Delírio, com a Perda de Poder e Mercado
Introdução
No dia 18 de março de
2023, completam-se 20 anos da invasão anglo-americana do Iraque, que foi feita
sem motivo legítimo nem aprovação do Conselho de Segurança da ONU, mas que
deixou para trás 300 mil mortos iraquianos e os famosos registros fotográficos
das atrocidades cometidas pelos norte-americanos na prisão de Abu Ghraib. E
assim mesmo, depois de derrotar e destruir o Iraque, os norte-americanos
perderam o controle político do país para o Irã, seu principal competidor e
adversário no Oriente Médio. Depois, os Estados Unidos sofreram sucessivos
reveses em suas invasões e “guerras sem fim” no Afeganistão, na Líbia, na Síria
e no Iêmen, e em sua fracassada tentativa de isolamento e asfixia da economia
iraniana. Agora estão envolvidos em uma
nova guerra, no território da Ucrânia, sem conseguir definir de forma clara
quais são seus objetivos neste conflito, nem têm a menor possibilidade de
alcançar uma vitória definitiva no campo de batalha sem passar por uma guerra
direta com a maior potência atômica do planeta.
Isolamento Previsível dos EUA na Geopolítica Global
Ainda assim, há muitos analistas
que avaliam que os Estados Unidos obtiveram uma vitória estratégica na Ucrânia
ao eliminar arestas e estreitar seus laços militares com a União Europeia, com
os “povos de língua inglesa” e com alguns aliados asiáticos tradicionais. Não
se tomou em conta, entretanto, que o “bloco” formado pelos EUA e seus satélites
e protetorados militares sempre existiu, desde o fim da Segunda Guerra, e que nenhum
desses países – a começar pela Alemanha, Itália e Japão – deixou de ser ocupado
por bases americanas e transformado em “protetorado atômico” dos Estados
Unidos. Não se percebeu, também, que o aumento da convergência militar desses
países, liderados pelo G7 (Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido
e Estados Unidos), vem se
transformando na contra-face do seu isolamento cada vez maior com relação ao
resto do mundo eurasiano (Europa/Ásia), africano e latino-americano. Basta
observar o apoio cada vez menor que esses países vêm obtendo na sua tentativa
de cercar, isolar e asfixiar economicamente seus inimigos, notadamente o
Irã, a Rússia, e mesmo a China, do ponto de vista da guerra comercial e
tecnológica a que vem sendo submetida desde o governo de Donald Trump.
G7 perde poder global, depois de 300 anos de domínio
Não é de estranhar, portanto, o
aumento da agressividade retórica, diplomática e ideológica dos EUA e de seus
satélites, que vêm adotando uma postura cada vez mais militarista, mesmo sem
avaliar as consequências últimas desta sua reação quase irracional à perda do
poder global exercido nos últimos 300 anos. Como se os países do “Atlântico
Norte” e seus pequenos satélites asiáticos estivessem perdendo o rumo e o
próprio sentido do absurdo de algumas de suas iniciativas absolutamente
destemperadas e quase ridículas, do ponto de vista da sua disputa global.
A começar pela visita a Taiwan, a
presidenta do Congresso Americano, Nancy Pelosi, feita de forma absolutamente
temperamental e juvenil, sem levar minimamente em conta suas consequências
de médio e longo prazo, que acabaram consolidando e cristalizando a reivindicação
e o poder da China sobre sua “ilha rebelde”, criada com apoio militar
americano, em 1946. Depois, acumulam-se os discursos destemperados das
autoridades americanas e europeias absolutamente “possuídas” por uma “fobia
russa” semelhante a várias outras que já tiveram no passado, como se a Europa
não conseguisse se manter unida sem a demonização de um inimigo externo,
como já foram os islâmicos, os comunistas e os judeus. Para não falar de
episódios quase ridículos, como foi o caso delirante da “guerra dos balões”
iniciada e logo encerrada por um governo Biden completamente desorientado.
Ou a “ordem de prisão” decretada contra o presidente da Rússia por uma
instituição criada pelos europeus e inteiramente desmoralizada e des-legitimizada
pelos próprios norte-americanos. Ou ainda, e de forma mais irresponsável, o
envio de um drone militar para a zona de guerra russa, na Crimeia, terminando
com a queda e a perda inconsequente do equipamento derrubado pelos aviões
russos, sem que houvesse nenhum tipo de resposta ou continuidade,
caracterizando uma iniciativa inteiramente impensada da parte do governo
americano. Tudo isto foi acompanhado de uma linguagem cada vez mais agressiva e
destemperada, que já começou a ser utilizada pelos dois “homens-bomba” que comandaram
a política externa de Donald Trump, Mike Pompeo e John Bolton, a mesma
que segue sendo utilizada pelos dois “missionários liberais internacionalistas
(sic)” que comandam a política externa do governo de Joe Biden, Anthony Blinken
e Jack Sullivan – com a diferença fundamental que os dois democratas veem o
mundo como uma luta entre o “bem” e o “mal”, e se consideram
evidentemente representantes do “bem”, com a missão de converter o mundo
à sua tábua de valores.
Erros Estratégicos de Longo Prazo do G7
O problema é que por trás desses
“desatinos” mais visíveis vem se somando uma quantidade de erros de cálculo e
de concepção estratégica de mais longo prazo, que estão conduzindo os Estados
Unidos e seus satélites, progressivamente, para um “beco sem saída”.
O primeiro deles, mais ligado
diretamente ao início da guerra, foi negar-se a negociar de forma discreta e
diplomática a neutralização da Ucrânia e a construção de um novo mapa de
segurança e equilíbrio estratégico de longo prazo na Europa.
E o segundo erro, que foi
uma consequência imediata do primeiro, foi boicotar as negociações de paz que estavam
em curso entre a Rússia e a Ucrânia, logo na primeira semana da guerra, apostando
no sucesso da guerra econômica que já estava planejada e que seria desencadeada
imediatamente pelos países do G7 contra a Rússia.
Duas decisões cruciais, e dois
erros de cálculo estratégico – como a história demonstrará – que foram
orientados pela mesma visão estratégica dos “missionários de Biden (sic)” que
desde o início do governo democrata, vêm tentando dividir e polarizar o mundo,
forçando uma nova Guerra Fria entre países democráticos e países
autocráticos, definidos de forma “autocrática” e unilateral pelos próprios
Estados Unidos.
Essas duas decisões foram
sustentadas na mesma certeza dos americanos e seus satélites de que poderiam
impor uma derrota imediata e humilhante à Rússia, com o estrangulamento de sua
economia nacional, através de um pacote de sanções econômicas de dimensões
desconhecidas, envolvendo o bloqueio europeu do comércio do petróleo e do gás
russos, o congelamento e expropriação das reservas e ativos russos depositados nos
bancos do G7, e finalmente, através da suspensão de todas as relações
financeiras da economia russa com esses mesmos países e todos os demais
que viessem a apoiar as sanções globais comandadas por norte-americanos e
europeus. Nos dois casos, entretanto, parece que os Estados Unidos e seus
satélites erraram redondamente.
ONU perde a cada ano poder e influência global
Primeiro, porque a maioria dos
Estados do sistema internacional vem se mostrando extremamente reticente a
entrar em uma nova Guerra Fria, e vem resistindo terminantemente a tomar
partido no conflito da Ucrânia, negando-se a apoiar as sanções econômicas
aplicadas por americanos e europeus contra a Rússia. Dos 194 países com assento
nas Nações Unidas, só 47 apoiaram essas sanções, sendo muitos absolutamente insignificantes,
como é o caso de Andorra, Mônaco, Islândia, Liechtenstein, Micronésia, San Marino,
ou Montenegro do Norte, entre outros.
Em segundo lugar, pesquisas
recentes realizadas por universidades europeias e americanas vêm indicando que
a maioria da população mundial que vive fora dos países que compõem a coalizão
minoritária dos Estados Unidos e seus satélites europeus e asiáticos, não
veem o mundo como eles, não apoiam a guerra nem as sanções econômicas
aplicadas à Rússia, não se consideram menos democráticos do que os
americanos e europeus, e consideram que a “coalizão ocidental” está
envolvida no conflito da Ucrânia em defesa de seus interesses geo-políticos, e
não em defesa de valores ou direitos humanos supostamente universais.
Sanções econômicas do G7 afundam a economia no Ocidente
Mas o que é pior, do ponto de
vista euro-americano, é que depois desses erros iniciais de avaliação, a
“devastadora” guerra econômica desencadeada contra a Rússia não teve sucesso,
ou pelo menos não logrou seus objetivos. Não conseguiu estrangular de forma
instantânea a capacidade financeira dos russos de sustentarem sua ofensiva na Ucrânia,
como tampouco teve os impactos esperados sobre o funcionamento interno da economia
russa, que conseguiu driblar o cerco comercial e financeiro abrindo novos mercados,
re-desenhando sua estratégia econômica nacional e alcançando, já em 2023,
segundo o FMI, um crescimento econômico positivo. Neste sentido, erraram
uma vez mais os estrategos americanos e europeus, porque suas sanções
financeiras e seu bloqueio comercial da Rússia acabaram tendo um efeito
absolutamente destrutivo sobre as economias europeias, que enfrentam uma
acelerada des-industrialização – como é o caso da Alemanha – ou uma des-integração
social e política – como está se assistindo na França e na própria Inglaterra,
cujas previsões indicam que até 2030 esta já poderá ter se transformado num
país com renda per capita inferior à da Polônia, que foi até hoje uma
fornecedora de mão de obra barata da economia inglesa. Em parte por conta
do Brexit, é verdade, em parte por conta do seu envolvimento cada vez mais
agressivo na escalada europeia contra a Rússia. Crises e desintegrações
econômicas e sociais causadas, em última instância, pelas sanções econômicas
que cortaram a energia barata da Europa, diminuíram a competitividade de suas
economias e atingiram em cheio o salário da população, através da inflação e do
aumento dos custos de energia e alimentação. Vasos comunicantes que estão
atuando também na atual crise financeira dos bancos americanos e europeus,
premidos pelo aumento da inflação e da taxa de juros, e ainda pela perda de credibilidade
de seus títulos públicos, depois do congelamento e expropriação das reservas e
aplicações russas.
Conclusão
Resumindo: de
todos os pontos de vista que se olhe a evolução da conjuntura internacional, o
que se vê é que o bloco formado pelos Estados Unidos e seus satélites está
ficando cada vez mais ilhado, mais agressivo, e mais sem saída. O governo
americano de Joe Biden não consegue definir com claridade qual é o objetivo da
sua participação cada vez mais direta na Guerra da Ucrânia. Até onde querem
chegar? Quais são suas expectativas e possibilidades mais além da propaganda? E
o mesmo se pode dizer com relação à política cada vez mais agressiva dos
norte-americanos com relação à China: quais seus objetivos e até onde estão
dispostos a chegar na sua disputa pelo Mar do Sul da China e na sua defesa de
Taiwan, enfrentando, neste caso, divisões e fraturas dentro do próprio
bloco euro-americano? Deve-se somar-se a essas incertezas e à perda progressiva
de rumo da política externa americana, o aumento da divisão e da polarização cada
vez mais agressiva da própria política interna dos Estados Unidos, que não
permite nenhum tipo de previsão de longo prazo que não seja a agressividade
conjunta dos dois partidos políticos americanos contra a China.
Ao mesmo tempo, é exatamente
neste ponto que os norte-americanos vêm sofrendo seus maiores reveses, e
demonstrando maior incompreensão dos acontecimentos, restando-lhe um apelo cada
vez mais explícito ao seu poder militar. São quase só ameaças, anúncio de novos
armamentos, aumento expressivo do orçamento militar de 2023, cheque em
branco para a guerra da Ucrânia e reativação de velhas alianças, como no caso
da inciativa do acordo AUKUS, com Inglaterra e Austrália, membros
incondicionais da velha “família colonial de língua inglesa”. Tal obsessão
militarista pode ser a causa de os Estados Unidos não terem conseguido
antecipar ou prever o que foi com certeza sua maior derrota diplomática desde a
“crise dos reféns” da embaixada norte-americana de Teerã, em 1979: o
anúncio, na cidade de Pequim, no dia 15 de março de 2023, do acordo mediado
pela China de pacificação das relações entre o Irã e a Arábia Saudita, e
do restabelecimento de relações diplomáticas entre os dois países em dois meses
mais, junto com seu compromisso mútuo de defesa do princípio da soberania
nacional.
Na década de 1950, os Estados
Unidos construíram seu esquema de poder no Oriente Médio apoiado no Irã, na
Arábia Saudita e em Israel. Em 1979, os norte-americanos perderam o Irã, e
agora estão perdendo a Arábia Saudita. Ou seja, o acordo negociado pela China afasta os Estados Unidos do Oriente Médio
e anuncia a chegada da influência chinesa sem nenhuma nova guerra, pelo
contrário, através de uma diplomacia da paz, que se soma ao Plano de Paz de 12
pontos apresentado pela China aos governos da Rússia e da Ucrânia, e também
aos governos dos demais países envolvidos diretamente nessa guerra, a começar
pelos Estados Unidos. Iniciativas diplomáticas da China na Ásia, Europa, África
e América Latina, que anteciparam o anúncio pelo presidente chinês, Xi Jinping,
de sua Global Civilization Initiative, o mais ambicioso projeto de pacificação
universal jamais apresentado aos povos do mundo por uma grande potência e uma
grande civilização.
Publicado no Brasil 24/7: 22 de
março de 2023
Fonte: https://www.brasil247.com/blog/erros-e-desatinos-estrategicos-de-uma-potencia-que-perdeu-o-prumo
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