"Israel não tem condições políticas e mesmo militares, apesar do seu poderio, de realizar a limpeza étnica que lhe permitiria ter uma fronteira separando os judeus de outros povos. Por outro lado, embora o Hamas não tenha a adesão clara da maioria dos palestinos, até porque não se submete a eleições desde que ganhou-a na faixa de Gaza em 2006, ele tem o suficiente de adesão, sobretudo da juventude. Esta não tem qualquer perspectiva de uma vida normal à sua frente e vive submetida a uma opressão e miséria que tem um alvo claro, o governo de Israel e um instrumento de combate também claro, o Hamas. Israel pode destruir a infraestrutura do Hamas e liquidar sua liderança, mas enquanto o sentimento de revolta estiver persistindo e enquanto houver Estados islâmicos dispostos a financiar, tudo isto pode ser reconstruído."
por Jean Marc von der Weid no IHU Unissinos – Sociedade e Ser Humano Sem Controle Emocional e Físico
Muita gente qualificada ou não já gastou um rio amazonas de tinta (metaforicamente, é claro, ninguém escreve mais com tinta) a partir dos mais diversos ângulos (militar, político, diplomático, geopolítico, sociológico, histórico, ...). Abordagens pró e contra Israel, com ou sem inclusão dos Estados Unidos e pró e contra o Hamas tenderam a dominar as mensagens. Uma parcela minoritária da esquerda condenou o Hamas e defendeu a causa palestina e foi execrada nas redes. Será que existe algo de novo ou de diferente a ser apresentado neste tema? Provavelmente não, mas vou assumir o risco de chover no molhado, sem pretensão de ter uma abordagem diferente ou de trazer novas informações. É no arranjo dos argumentos que espero fazer uma diferença e, sobretudo, na avaliação dos possíveis desdobramentos.
Antes de entrar na matéria, gostaria de analisar
alguns argumentos que encontrei, mais ou menos explícitos entre os defensores
das ações do Hamas. De
forma sintética, eles podem ser reduzidos a algumas frases:
Os fins justificam os meios.
O inimigo do meu inimigo é meu
amigo.
A violência dos oprimidos se
justifica pela violência dos opressores.
Guerra é guerra
Estes argumentos concernem a definição de terrorismo neste debate. Na esquerda ninguém discute a existência de um terrorismo de Estado aplicado pelo governo israelense; os fatos falam por si. Mas uma parte da esquerda recusa-se a condenar o Hamas e a caracterizar sua ação como terrorista. Os mais explícitos defendem o direito do Hamas de massacrar civis israelenses como parte de sua estratégia político-militar, aceitando, no limite, que esta ação terrorista seja admissível no contexto desta guerra desigual. Outros discutem se o termo terrorismo é aplicável neste caso. A meu ver trata-se da busca da divisão em quatro de um fio de cabelo, ou seja, jogo de palavras para disfarçar uma posição altamente impopular de apoio à atos de violência contra inocentes.
Acho que, não fosse esta camisa de força
ideológica, os fatos também falariam por si na caracterização da violência do
Hamas. Só o negacionismo mais cru e cruel pode desconhecer que o
assassinato a frio de mais de mil civis israelenses, quer na rave quer nos
Kibutz ou nas estradas e vilas, foi um típico ato terrorista, em qualquer
dicionário de política que se acesse. Argumentos querendo minimizar os atos
como excessos de (alguns) palestinos revoltados por décadas de violência e
opressão não fazem sentido quando se olha a amplitude do massacre. Bastante
claro, as mortes foram planejadas pela direção do Hamas e executadas pelos seus quadros militares. Não é uma
“reação visceral”, explicável com sociologia e psicologia, mas um ato
preconcebido e com objetivos políticos e sobretudo militares.
Qual o objetivo político? Indicar para a população
israelense que ela está vulnerável e, com isso, enfraquecer o governo de
ultradireita de Netanyahu. Do ponto de
vista da população de Israel, segundo pesquisas de opinião que ninguém
questiona, a tática deu certo e o primeiro-ministro tem quase 80% de
desaprovação. Mas e daí? Em que este impacto favorece os objetivos estratégicos
do Hamas? Só para lembrar,
o Hamas defende a
liquidação do Estado de Israel e
é de todo impossível que os cidadãos israelitas, de todas as posições políticas
e ideológicas, venham a aceitar esta posição, por mais que fiquem preocupados e
mesmo deprimidos com o estado de guerra interminável com as organizações
palestinas.
E o objetivo militar? É claríssimo o fato de que a
força armada do Hamas, que pode dispor de alguns milhares de combatentes, não
tem poder para derrotar o exército israelense, não só muitíssimo mais bem
armado como muitíssimo mais numeroso. O Hamas provocou o exército israelense com os massacres, e
recuou para o labirinto de ruelas e túneis da faixa de Gaza,
onde se aglomeram mais de dois milhões de pessoas. O governo de Israel adotou,
até agora, uma posição de retaliação punitiva através de bombardeios
pretensamente cirúrgicos para destruir a infraestrutura civil e militar
do Hamas. É uma ação de
baixa eficiência militar e alto custo político, já que a população civil é quem
paga o preço nos bombardeios. Abrigados em túneis, os militares e militantes
do Hamas estão a mais
de 50 metros de profundidade, e podem esperar razoavelmente intocados que Israel reduza a parte norte de
Gaza a um monte de escombros.
O governo de Israel acusa o Hamas de
usar a população como “escudo humano” para inibir os bombardeios e se exime da
responsabilidade das baixas civis provocadas pelas suas bombas. É isso mesmo
que o Hamas está
fazendo, mas o objetivo não é impedir os bombardeios porque nos muitos anos de
ação da artilharia e da força aérea israelense isto nunca aconteceu. O objetivo
é desgastar politicamente as forças armadas israelenses e este objetivo está
sendo amplamente alcançado no plano internacional.
O governo israelense sabe que os bombardeios têm
efeito politicamente negativo e têm efeito pífio militarmente, mas não tem
alternativa a não ser a invasão da faixa
de Gaza. Esta decisão parece que já foi tomada desde os primeiros dias
da crise, mas vem sendo adiada por várias razões. A primeira foi a ordem de
evacuação da população da região norte, com o objetivo de isolar os militantes
e militares do Hamas e
permitir um bombardeio ainda mais pesado. Há controvérsias sobre as novas
bombas americanas adquiridas por Israel,
e que seriam capazes de atingir os mais profundos túneis. De toda forma, até
para chegar a este ponto da destruição da infraestrutura de proteção do Hamas, o impacto sobre o
conjunto das edificações neste território vai deixar o monte de escombros de
Stalingrado (cidade russa destruída pelos alemães na 2ª. guerra mundial) no
chinelo. E calcula-se que ainda sobram quase 500 mil civis palestinos, homens,
mulheres, crianças, velhos, doentes na futura “no man’s land”. O
bombardeio pré-invasão terrestre vai ser um banho de sangue e o isolamento
político e diplomático de Israel no
mundo vai se aprofundar.
Como o exemplo citado de Stalingrado já demonstrou, o
combate entre escombros de uma cidade arrasada diminui as vantagens do
combatente mais equipado, impedindo a ação de blindados, por exemplo. Fica
favorecido o combatente com mais mobilidade, como deverá ser o caso dos
militantes do Hamas usando
os túneis e, sobretudo, os mais aguerridos. Apesar da fama de super força
armada, o exército de Israel não tem uma infantaria com experiência neste
combate de rua, de túneis e de escombros e o grau de entusiasmo dos seus jovens
é certamente menos intenso do que aquilo que a imprensa ocidental chama de
“fanatismo” dos militantes do Hamas.
Vai ser outro banho de sangue, incluindo um contingente de soldados israelenses
em proporções nunca vistas nas suas guerras anteriores.
O Hamas pode
estar apostando, também, na expansão dos combates, atraindo ataques do Hezbolah
a partir do sul do Líbano e
do oeste da Síria. Seria um
enorme aumento na pressão militar sobre as forças armadas de Israel que teriam que lutar em
três frentes.
Muita coisa está ainda em especulação, inclusive
a invasão de Gaza, depois
dos conselhos dos militares americanos em contrário, acompanhados pela oposição
pública de Biden, apesar de
todo o seu “apoio total” a Israel.
“Last but not least”, é preciso avaliar os
impactos geopolíticos e diplomáticos desta crise. Há quem atribua a ação
do Hamas a um
“estímulo” do governo iraniano, cujo objetivo seria evitar os acordos sendo
negociados com os auspícios do governo americano, entre Israel e
a Arábia Saudita, que
isolariam a posição dos aiatolás no Levante. De fato, governos com acordos
com Israel já
consolidados, como os do Egito e Jordânia, somaram-se aos
do Líbano, Síria, Turquia, OUA (Organização da Unidade Africana), Arábia Saudita, Emirados Árabes entre outros,
para condenar Israel.
O isolamento de Israel está arrastando a diplomacia americana para o mesmo
buraco, como ficou patente no veto (um contra 12 e duas abstenções) no Conselho de Segurança da ONU. A
proposta brasileira da criação de um corredor humanitário foi extremamente
hábil e representou uma espetacular vitória política do Brasil na presidência
do Conselho. Vitória tão mais importante por colocar a nu a caduca estrutura
decisória do Conselho, com os poderes de veto atribuídos aos países vitoriosos
na Segunda Guerra Mundial (Estados
Unidos, Rússia, Inglaterra, França e China). Esta posição anacrônica é dura de
entender para quem não estuda a história da ONU. Afinal de contas, quando esta
decisão foi tomada em 1945, nem a França nem
a China podiam ser
consideradas forças vitoriosas na II GM. Mas o temor dos EUA de uma expansão comunista nos
dois países levou a valorizar sua participação como parte de uma política de
neutralização, que deu certo na Europa,
mas não na Ásia. O presidente Lula tem
repetido a crítica a este sistema ultrapassado pela evolução da geopolítica,
pleiteando uma redistribuição de responsabilidades com maior destaque para
forças como Índia, Japão, Indonésia, África do
Sul, Egito, Alemanha, Canadá, México e Brasil. O absurdo do poder de veto
ficou mais do que evidenciado neste episódio.
A
discussão mais importante nesta crise deve ser a da busca de uma solução para o
impasse que já está fazendo quase 75 anos.
As resoluções da ONU definindo a existência de dois
Estados, representando a nação israelense
e a nação palestina, são tão velhas que é preciso que sejam
revistas em função das transformações ocorridas desde então. A alternativa de
um Estado laico, unificando os territórios hoje em disputa, com direitos iguais
para os dois povos vem sendo levantada por alguns analistas, mas será possível
neste quadro com três gerações de conflitos?
O problema de fundo está na origem da criação
do Estado de Israel. O movimento sionista, iniciado sem
muita expressão no final do século XIX, tem como princípio o “direito” dos judeus
a uma nação e um Estado próprio, localizado na região imprecisamente definida
como Palestina. Com base
nesta ideia, promoveu-se uma migração de judeus de todo o mundo, que foram se
estabelecendo em terras, inicialmente parte do império Otomano e, após a
primeira grande guerra, sob o controle de um “protetorado” britânico. A
mobilização de recursos dos judeus da diáspora, sobretudo dos Estados Unidos e da Inglaterra, comprando terras dos
nativos da Palestina permitiu
a formação de assentamentos judaicos, os kibutz.
Com o fim da segunda grande guerra e o impacto político do Holocausto promovido pelo
nazismo, este movimento ganhou muita força e os assentamentos foram se
multiplicando com a migração dos sobreviventes, sobretudo dos países do leste
europeu e da antiga União Soviética.
A pressão pelo reconhecimento do direito à nação
judaica foi crescendo, inclusive no território sob controle britânico, com o
uso do terrorismo por organizações judaicas como a Hagana e o Likud.
A decisão de criar o Estado judaico, intitulado Israel, foi tomada sem se considerar que a população
judaica, seja de nativos da região ou de migrantes de outras partes, era muito
inferior à população muçulmana. A propaganda pró Israel falsificou esta realidade com uma narrativa absurda
onde foram apresentadas as manchas de terras compradas pelos judeus em
contraste com espaços supostamente vazios.
Nestes espaços, ditos vazios, mais de dois milhões
de não judeus viviam há séculos, mas foram deslocados manu militari, em ações
com características terroristas, nos anos imediatamente posteriores à fundação
de Israel. Empurrada
para Gaza e para o Líbano, esta população foi viver
em acampamentos de refugiados que estão na origem do movimento permanente de
retomada das suas raízes territoriais. Este movimento de ocupação foi sendo
estimulado pelo novo Estado, com maior ou menor ação agressiva, inclusive guerras
que levaram à expansão
territorial de Israel, tomando a Cisjordânia da Jordânia,
as colinas de Golã da Síria e
pedaços (menores) do Egito e
do Líbano. Nestes
territórios as colônias judaicas foram se espalhando e expulsando mais e mais
palestinos.
A questão não é apenas a expansão das colônias e a
expulsão dos não judeus. Apesar de momentos em que governos israelenses
buscaram acordos para garantir espaços para os palestinos (Camp David, Oslo), a ideologia dominante entre os
israelenses foi se perfilhando sempre mais próxima ao princípio do direito
inalienável dos judeus a estas terras. Este princípio tem como corolário a
limpeza étnica que foi sendo adotada por governos sempre mais à direita em
Israel. Os não judeus remanescentes dentro do território sempre foram cidadãos
de segunda classe, sem direitos e hostilizados pelos segmentos mais extremados
do sionismo. Com este quadro de distribuição populacional, não existe mais, no
mundo de hoje, espaço para um Estado
Palestino, cujo embrião é a paródia de uma administração dividida entre
a Cisjordânia e
a faixa de Gaza, com muitos
milhares de potenciais cidadãos ainda aglomerados em acampamentos nas
fronteiras.
A estratégia de Israel é o controle total do espaço contínuo entre as
fronteiras do Egito, da Síria, da Jordânia e do Líbano e o mar mediterrâneo. Para
alcançar este fim vai ser preciso expulsar três a quatro milhões de pessoas.
Para completar este quadro, não podemos esquecer que Israel tende cada vez mais a se
tornar um Estado teocrático, regido pelas normas da religião. Como poderiam
conviver com uma população não judia e em sua maioria amplíssima composta por muçulmanos?
Do outro lado, a população não judaica, com uma
identidade política definida pela busca de um Estado Palestino,
não tem como conviver com um Estado Judaico.
A criação de um Estado palestino exigiria a retirada maciça dos colonos
da Cisjordânia e de
outras partes do território.
A solução alternativa à criação de um Estado Palestino é a criação de
um Estado laico com direitos iguais para os defensores das diferentes confissões,
não esquecendo que existem ainda minorias cristãs variadas. Mas com uns e
outros cada vez mais dominados pelos diferentes fundamentalismos (Sharia para uns e Torá para outros) admitir um
Estado laico e coexistir com diferentes crenças é cada vez mais uma
possibilidade remota.
Tudo isso aponta para o prolongamento do impasse
ad aeternum. Israel não
tem condições políticas e mesmo militares, apesar do seu poderio, de realizar a
limpeza étnica que lhe permitiria ter uma fronteira separando os judeus dos
outros. Por outro lado, embora o Hamas não
tenha a adesão clara da maioria dos palestinos, até porque não se submete a
eleições desde que ganhou-a na faixa
de Gaza em 2006, ele tem o suficiente de adesão, sobretudo da
juventude. Esta não tem qualquer perspectiva de uma vida normal à sua frente e
vive submetida a uma opressão e miséria que tem um alvo claro, o governo
de Israel e um
instrumento de combate também claro, o Hamas.
Israel pode destruir a infraestrutura do Hamas e liquidar sua liderança, mas enquanto o sentimento de
revolta estiver persistindo e enquanto houver Estados islâmicos dispostos a
financiar, tudo isto pode ser reconstruído.
Resta a questão inicial deste debate: qual o limite
ético de uma guerra com estas características? Massacres de civis, seja
pelo Hamas ou Estado israelense, não deveriam ser
admitidos, seja pelos judeus, seja pelos palestinos, mas o que transparece é a
predominância das auto-justificativas. E uns como outros transmitem suas
narrativas para a audiência mundial, levando à identificação do bem contra o
mal por um e por outro lado. O apoio ao Hamas por ser uma força antissionista e antiamericana,
esquecendo sua brutalidade contra civis desarmados e sua ideologia
fundamentalista é, a meu ver, uma adesão perigosa à uma ética ou falta dela,
justificando qualquer violência contra o “inimigo”, seja ele quem for, militar
ou civil. Por outro lado, o apoio ao governo israelense no seu terrorismo de
Estado atingindo milhões de pessoas com uma crueldade consciente, através de
bombardeios, bloqueios de comida, água, energia e medicamentos, é o outro lado
da moeda, agravado pelo fato de ser muito mais poderoso.
Neste
complicado imbróglio, a atitude do governo Lula de defender (sintetizando a
proposta) um corredor humanitário, é absolutamente correta e pode abrir um
canal a ser explorado e ampliado, isolando os extremismos. Parabéns à
diplomacia brasileira.
*Jean Marc von der Weid,
ex-presidente da UNE (1969-71),
jornalista e fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e
Agroecologia (ASTA).
Publicado no IHU Unissinos: 24 outubro 2023
Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/633527-o-confronto-entre-o-estado-de-israel-e-o-povo-palestino-sem-perspectiva-de-solucao-artigo-de-jean-marc-von-der-weid
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