Construir uma vida com sentido e propósito é benéfico para a sensação de bem-estar. Praticar exercícios físicos, ter momentos de lazer, encontrar amigos e familiares, aceitar momentos de tristeza como parte da vida, buscar terapia, podem contribuir para a melhoria da saúde mental
Suicídio não é um vírus ou uma
doença contagiosa que possa ser prevenida de modo simples. Pensar sobre a vida
e a morte é “demasiadamente humano” e faz parte do processo vital. Prevenir o
suicídio, desse modo, passa pela construção de uma vida que se deseja viver,
com sentido, rede de apoio, propósitos, acesso aos direitos fundamentais, com
liberdade, dignidade, respeito e gratidão
Taxas
de suicídio entre homens são 'absurdamente mais altas' do que entre as
mulheres, diz a psicóloga Jéssica Prudente
"O modo de vida
contemporâneo é adoecedor, exigindo padrões de desempenho, dedicação, cuidados,
resistências e preparações que não cabem em um dia de 24 horas". É a
advertência da psicóloga Jéssica Prudente. Ela é doutora em Psicologia Social e
Institucional pela Ufrgs e professora da PUC/RS
por Fabiana Reinholz no Brasil de Fato – Sociedade e Pela Vida das Crianças, Jovens, Adultos e
Idosos Com Direito a Justiça, Bondade e Cidadania
O Brasil de Fato RS conversou com Jéssica no encerramento do “Setembro Amarelo”. É o mês dedicado à campanha de prevenção ao suicídio e à discussão de temas de saúde mental.
No Brasil,
acontecem cerca de 12
mil suicídios a cada ano. E o Rio Grande do Sul é o estado que ostenta a maior taxa de suicídios.
São 12,4 mortes a cada 100 mil habitantes, o que representa o dobro da média
nacional.
A psicóloga nota que países como o nosso estão na
contramão das taxas globais de suicídios apresentando elevação dos índices. As
explicações? São muitas, segundo Jéssica.
É o que ela detalha na entrevista onde conta também sobre os sinais de alerta de suicídio,
as taxas “absurdamente mais altas” entre os homens, o papel das redes sociais,
a relação entre agrotóxicos e suicídio, o resultado nocivo da exaltação à
competição quando o “outro” se converte no inimigo a ser vencido.
Brasil de Fato RS - A Organização Mundial da Saúde
(OMS) informa que, a cada ano, mais de 700 mil pessoas se suicidam. Significa
uma em cada 100 mortes registradas. Estamos nos matando mais? Em caso positivo,
por quais razões?
Jéssica Prudente - As
taxas de suicídio não se distribuem igualmente no mundo. Segundo a Organização
Mundial da Saúde (OMS) entre os anos 2000 e 2019, as taxas mundiais de suicídio
diminuíram 36%, enquanto nas Américas aumentaram 17%. Então, a resposta para a
primeira pergunta é relativa à região do mundo que está sendo analisada. Uma
pesquisa publicada esse ano (2023) no “The Lancet Regional Health – Americas”
indica a importância dos determinantes sociais para entender os índices de
riscos e modos de prevenção do suicídio: gênero, educação, uso de álcool e
outras drogas, emprego, entre outros fatores.
Quatro em cada cinco suicídios ocorrem em países de
baixa e média renda
A OMS também indica que 79% dos suicídios ocorrem
em países de baixa e média renda, o que ajuda a responder a segunda pergunta.
As razões para o fenômeno do suicídio são multifatoriais, destacando-se
desigualdade social, falta de acesso a políticas públicas, presença de transtornos
psiquiátricos, vulnerabilidades e uso de álcool e outras drogas.
É importante salientar que as taxas de suicídio são
mais altas em grupos populacionais específicos: indígenas, população
LGBTQIAPN+, pessoas em situação de privação de liberdade, população negra e que
vem ocorrendo um aumento expressivo entre os jovens de diferentes grupos
populacionais. Então, pode-se dizer que o aumento das taxas de suicídio tem
ligação direta com a desigualdade social, preconceitos, ruptura de sistemas
sociais de solidariedade, aumento da competitividade, com a angústia relativa
ao modo de vida contemporâneo e falta de expectativas do futuro.
"Suicídio não é um vírus ou uma doença
contagiosa que possa ser prevenida de modo simples" / Foto: Arquivo
Pessoal
Se uma pessoa próxima
expressa vontade de se suicidar, leve a frase a sério
BdFRS - Quais as
principais formas de se prevenir o suicídio?
Jéssica - Suicídio não é um vírus ou uma
doença contagiosa que possa ser prevenida de modo simples. Pensar sobre a vida
e a morte é “demasiadamente humano” e faz parte do processo vital. Prevenir o
suicídio, desse modo, passa pela construção de uma vida que se deseja viver,
com sentido, rede de apoio, propósitos, acesso aos direitos fundamentais, com
liberdade e dignidade. Talvez seja importante pensar sobre onde está a
vida na prevenção, pois quando se consegue evitar um suicídio, como essa vida
irá seguir depois?
Especificamente,
a prevenção do suicídio em termos comportamentais, quando há uma ideação
suicida ou planejamento em curso, pode incluir as seguintes ações: mostrar-se
disposto a escutar e não relativizar ou julgar o sofrimento do outro;
estabelecer uma postura de acolhimento e abertura; incentivar a pessoa a buscar
ajuda especializada, de um psicólogo ou psiquiatra; mostrar-se presente e
disponível; em casos mais severos, de surto ou tentativa, a pessoa deve ser
conduzida a um pronto atendimento.
BdFRS - Há outro dado preocupante: acredita-se que,
para cada morte por suicídio registrada, existem 20 tentativas não
registradas...
Jéssica - Existe uma
subnotificação nesses registros, inclusive entre as mortes por suicídio
registradas. Muitas mortes por acidentes, comportamentos de risco ou outros
eventos trágicos podem ter sido suicídio, sem que isso tenha chegado ao
conhecimento dos serviços de saúde. E sim, existem muitas tentativas de
suicídio que não chegam a ser efetivadas, nem registradas. Nesse ponto, é
importante destacar o trabalho dos profissionais de saúde que precisam
notificar situações de violência para a vigilância sanitária que produz os
dados epidemiológicos, e muitas vezes, diante do excesso de demanda, os
profissionais priorizam o atendimento dos casos em detrimento dos registros,
que requer tempo e detalhamento de informações.
No Sistema Único de Saúde, o SUS, temos a RAPS
(Rede de Atenção Psicossocial) que inclui serviços de atenção à saúde mental
para a população, destacando-se os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), que
contam com equipes multiprofissionais para atender as demandas de saúde mental,
enquanto dispositivos da Reforma Psiquiátrica. Os municípios com maior número
de habitantes contam com CAPS especializados em Infância e Adolescência e em
Álcool e Drogas. Esses serviços são fundamentais para prevenção e cuidado em
saúde mental da população, ainda que enfrentem as dificuldades e precarizações
do desinvestimento nas políticas públicas.
A
competitividade, enquanto laço social fundamental é destrutiva
Jéssica - Somos seres
gregários e sobrevivemos, historicamente, em grupos comunitários. A vida humana
é coletiva. Podemos pensar que a exposição a grandes grupos de pessoas,
centenas e milhares de opiniões, é algo bastante recente e inédito na história,
e certamente ainda não temos a real dimensão dos efeitos psíquicos e sociais
das tecnologias nos modos de vida, nem sobre a confrontação constante entre o
mundo virtual idealizado e a vida fora das redes sociais. Se a solidariedade
enquanto laço social primordial é protetiva, a competitividade, enquanto laço
social fundamental, é destrutiva, pois o “outro” acaba sendo visto como um
inimigo a ser vencido, o que se traduz na ênfase da individualização extrema,
naturalizando as relações de violência.
As redes sociais reduzidas a padrões estéticos, likes e lucro podem se tornar um ambiente hostil
As tecnologias, em si mesmo, não necessariamente produzem apenas individualização e solidão, pois há muitos modos de socialização, engajamentos, participação política, diversão, jogos, informações e integrações facilitadas pelas tecnologias. Hoje é possível que pessoas encontrem seus pares e se sintam acolhidos e pertencentes a uma infinidade de grupos, com diversas trocas e aprendizados que podem ser saudáveis, potentes e inclusivos. Entretanto, as redes sociais quando reduzidas aos critérios de padrões estéticos, métricas de likes e lucro podem sim tornar-se um ambiente hostil, nocivo, violento e excludente.
Talvez o que a internet e as redes sociais
facilitem é uma falsa sensação de participação e engajamento, quando o que está
sendo potencializado é a individualização. A busca de sentido para a vida é
algo que acompanha a humanidade, e a falta de um propósito não é relativa
apenas aos usos e desusos tecnológicos, mas possivelmente aos valores que estão
sendo cultuados e oferecidos como horizonte. Não podemos esquecer que vivemos
uma pandemia em que o medo, a angústia, o adoecimento, o isolamento e a morte
passaram a ser presença constante na vida das pessoas, nos noticiários e na
vida cotidiana, o que certamente ainda tem efeitos na saúde mental e um impacto
significativo na relação com a tecnologia.
BdFRS - Na frase famosa do escritor francês Albert
Camus, o suicídio é “o único problema filosófico verdadeiramente sério”. Ele
escreveu que “julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à
pergunta fundamental da filosofia”. As pessoas se matam ao sentirem
desesperança ante o absurdo da vida ou atrás dessa percepção existe uma
patologia que, ela sim, determina o desfecho?
Jéssica - Acho que essas
duas dimensões não estão separadas. Albert Camus chama de “absurda” a nossa
condição humana de fazer tudo o que fazemos tendo consciência da própria morte,
e é sobre essa condição que construímos séculos de civilização, cultura, arte,
linguagem. No campo da saúde mental, a vida tem uma referência marcadamente
normalizada, pois os diagnósticos são produzidos e os tratamentos são
prescritos a partir da comparação com um ideal de normalidade. Nos manuais de
prevenção ao suicídio vamos encontrar as estatísticas de que, na maioria dos
casos de suicídio, existe uma condição de transtorno ou patologia psiquiátrica.
Não é saudável adaptar-se a uma sociedade profundamente doente, Jiddu Krishnamurti
Uma questão importante a ser colocada, antes da pergunta sobre a psico-patologia, é sobre o que se entende por saúde mental atualmente e sobre o que se considera como normalidade. Um filósofo indiano chamado Jiddu Krishnamurti já dizia que “não é saudável adaptar-se a uma sociedade profundamente doente”. O modo de vida contemporâneo é adoecedor, exigindo padrões de desempenho, dedicação, cuidados, resistências e preparações que não cabem em um dia de 24 horas. As pessoas estão sempre cansadas, exaustas e sem energia, e em estados mais agudos isso ganha contornos de um transtorno psiquiátrico.
A taxa de suicídios entre pessoas com transtornos
psiquiátricos severos e persistentes não chega a 10% do total de suicídios.
Então, podemos entender as “patologias” não apenas em termos individualizantes,
reduzidas as questões biológicas e genéticas, mas como produzidas socialmente,
pois os índices da OMS apresentados no início da entrevista nos mostram o
quanto as questões dos determinantes sociais produzem sofrimento e são
adoecedoras, como, por exemplo, a depressão.
As
taxas de suicídio entre homens são muito mais altas do que entre mulheres
BdFRS - O Rio
Grande do Sul é o estado que ostenta a maior taxa de suicídios do Brasil. São
12,4 mortes a cada 100 mil habitantes, o que representa o dobro da média
nacional. Qual a explicação?
Jéssica - O
suicídio é um fenômeno multi-fatorial (vários fatores), complexo e se distribui
de modos diversos entre a população. Países como o Brasil estão na contramão
das taxas de suicídio globais, apresentando aumento nesses índices e o Rio
Grande do Sul figura como o estado brasileiro com maior número de casos. As
explicações são variadas e precisamos buscar os dados de pesquisas da Saúde
Coletiva, da Epidemiologia para pensar em algumas linhas possíveis de
explicação.
Em termos epidemio-lógicos, as taxas de suicídio
entre homens são muito mais altas do que entre mulheres. Mulheres apresentam
mais tentativas, mas homens concretizam o suicídio em taxas absurdamente mais
altas. Todos os índices de comportamentos violentos, trágicos e negligentes são
maiores entre homens: acidentes, homicídios, conflitos, suicídios, baixa
procura por prevenção em saúde e por atendimento em saúde mental.
Em que pese as explicações biológicas, percebemos
que temos no Rio Grande Sul uma cultura
conservadora, machista, tradicional, colonial que produz as masculinidades em
um espaço bastante reduzido em termos
de nuances afetivas e emocionais, dificultando a busca por auxílio. Ainda
existem estigmas sociais que associam a busca de ajuda e o reconhecimento do
sofrimento a uma noção de fragilidade, o que é evidenciado em relação a
masculinidade.
O uso de agrotóxicos aparece
nas pesquisas como vinculado ao aumento de suicídios
Outro fator importante do RS diz respeito ao trabalho rural e ao uso de agrotóxicos que aparecem em pesquisas como fator de vinculação com aumento de suicídio, o que constitui uma base importante de trabalho em nosso estado. 98% da produção de fumo do Brasil, por exemplo, é fornecida pela região sul, sendo a maior concentração no estado do RS e existem taxas bastante elevadas de suicídio em municípios da região do Vale do Rio Pardo.
A questão do isolamento de algumas regiões e a
distância de dispositivos de saúde também pode dificultar a busca por auxílio.
Nosso estado também tem grande número de indígenas que vivem situações de
conflito e de preconceito e apresentam números preocupantes em relação aos
índices de suicídio, principalmente entre jovens. Ainda, temos a questão do
clima frio e chuvoso, que aparece em algumas pesquisas como associado ao
aumento de números de suicídios.
Importante destacar que traçar relações de causa e
consequência lineares nos casos de suicídio é uma simplificação de um fenômeno
complexo, multifatorial e produzido socialmente. As questões de gênero e do
trabalho rural indicadas como possíveis fatores associados aos índices altos de
suicídio no RS são prevalências apontadas em pesquisas, mas não encerram as
possíveis explicações.
Outro comportamento mais comum
entre jovens é a automutilação
BdFRS - Quais são os sinais que o corpo e a mente dão quando algo não vai bem em relação à saúde mental?
Jéssica - Inicialmente,
importante destacar que o nosso modo de
vida atual tem sido desgastante, exigente em termos de produtividade, de acesso
a informação e de enfrentamento de situações individuais e sociais que são
estressores, com poucos espaços para o descanso e o lazer.
Quanto
aos sinais de agravamento da saúde mental, existem vários aspectos que podem
ser experimentados: irritabilidade, ansiedade, angústia, falta de motivação,
diminuição na energia e na sensação de prazer e alegria, desânimo, distúrbios
do sono, dificuldades de concentração, entre outros.
A questão importante a ser avaliada é relativa à constância e frequência dessas
sensações, pois ter dias difíceis, momentos mais complicados ou exigentes em
que esses sinais se apresentam faz parte da vida. Entretanto, quando isso se
instaura de modo habitual e constante, pode ser importante buscar ajuda.
BdFRS - Que
comportamentos podem ser vistos como preocupantes?
Jéssica - Sinais
de risco são pensamentos obsessivos, pessimistas ou sem esperança, seguidos de
mensagens ou falas autodestrutivas; alterações bruscas de humor (raiva,
vergonha, culpa, ansiedade) ou comportamentos irresponsáveis, como de quem não
tem nada a perder; felicidade ou melhora súbita frente a um quadro de
depressão; reconciliações inesperadas, desapegos de seus bens, entre outros.
Quaisquer desses comportamentos devem ser avaliados inseridos em um contexto
mais amplo da vida da pessoa, e não isoladamente.
Outro comportamento mais comum entre jovens é a
automutilação, no qual a dor física pode contribuir para a redução da dor
psicológica, mas nem sempre está acompanhado de ideação suicida.
BdFRS - Qual a
importância e quais as principais dicas para cuidar da saúde mental?
Jéssica - Construir uma vida com sentido
e propósito é benéfico para a sensação de bem-estar. Praticar exercícios
físicos, ter momentos de lazer, encontrar amigos e familiares, aceitar momentos
de tristeza como parte da vida, buscar terapia, podem contribuir para a
produção da saúde mental.
Se você enfrenta um momento difícil: ligue para o 188, voluntários do Centro de Valorização à Viva (CVV).
Estão disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana. Se uma pessoa próxima expressa vontade de se suicidar, leve a frase a sério (a maioria das pessoas fala sobre a vontade antes do ato) e encaminhe a pessoa para ajuda de um psicólogo ou psiquiatra.
Data de Publicação BdF RGS: 30 de Setembro de 2023
Fonte: BdF RGS _ https://www.brasildefato.com.br/2023/09/30/o-modo-de-vida-contemporaneo-e-adoecedor-adverte-psicologa-que-estuda-o-suicidio
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