ambiente
Onde a água é abundante, mas falta justiça, humanidade e luta social
Apesar da abundância de recursos hídricos, a população passou a ter de pagar, caro pelo bem essencial que chega às suas torneiras, desde que grandes corporações como por exemplo Odebrecht entre outras assumiram a distribuição da água
- No sudeste do Pará, a privatização da água pela Odebrecht caiu pesado nas contas das famílias pobres. A escolha é pagar a conta ou cortar na alimentação das crianças
por Sarah Fernandes para Rede Brasil Atual - Sociedade e Água, Patrimônio Natural e Injustiça Social
Foto Danilo Ramos
ÁGUA AOS MONTES: Meninos se divertem no Rio Araguaia
A tarde estava quente. Depois de
quatro dias de viagem e de 660 quilômetros percorridos pelo sudeste do
Pará, cortando latifúndios, remanescentes de florestas e pequenas vilas,
uma pausa às margens do Rio Araguaia para rever o roteiro. Difícil se
concentrar. Diante da imensidão de água, a exuberância da Amazônia era
ofuscada pela intimidade quase paternal entre o rio e as crianças, de
todas as idades e cor da pele, em meio a risadas, canções e gritinhos de
alegria, que ali brincavam. Algumas estavam com os pais e mães, que
pescavam ou lavavam roupa. Outras vinham sozinhas, trazendo as menores
pela mão.
Quem diria que a água, central na vida ribeirinha,
viesse a se tornar elemento de conflito nos municípios paraenses de São
João do Araguaia, São Geraldo do Araguaia e Xinguara? Apesar da
abundância de recursos hídricos, a população passou a ter de pagar,
caro, pelo bem essencial que chega às suas torneiras desde que a
Odebrecht Ambiental assumiu a sua distribuição. As famílias reclamam: a
conta subiu e a qualidade caiu. A saída é recorrer a fontes
alternativas, mesmo arriscando a saúde das crianças.
“Não há no Pará uma agência reguladora, que discuta
valores com a prefeitura e a população. Eu tenho de garantir a operação
da empresa, que é privada, e visa lucro. Não adianta ser hipócrita”,
afirma uma das engenheiras da concessionária, que teve a identidade
preservada. Só no Pará, a Odebrecht possui dez concessões de serviços de
água e esgoto. No Tocantins, são 47. Em cada município há metas a
cumprir, descritas nos planos municipais de água e esgoto.
“A região amazônica tem riquezas como minério, terra,
água. As empresas vêm com a intenção de se apropriar da água e do bem
público. A lógica da Odebrecht é outra: mercantilizar a água. E para
isso tem suas estratégias”, diz o integrante do Movimento dos Atingidos
por Barragens (MAB) Cristiano Medina.
A Odebrecht é uma das empresas investigadas na
Operação Lava Jato. Em julho, comprovantes bancários enviados pelo
Ministério Público da Suíça comprovaram transferências entre contas da
Odebrecht e ex-diretores da Petrobras. No mesmo mês, o juiz Sérgio Moro,
responsável pelos inquéritos, aceitou a denúncia do Ministério Público
Federal contra o presidente da empresa, Marcelo Odebrecht, e mais quatro
executivos. Ele se tornou réu, sob acusação de corrupção, lavagem de
dinheiro e organização criminosa e está preso em Curitiba desde 19 de
junho.
Ou comida, ou água
A notícia da chegada de duas pessoas de São Paulo
correu a zona rural do pequeno São João do Araguaia. Famílias inteiras
saíam de suas casas de madeira, em quintal de terra batida, e esperaram
junto às cercas de arame farpado – um modelo de construção quase que
padronizado ali. Nas mãos, as contas de água dos últimos meses, com
avisos de corte. No rosto, a expressão da esperança de resolver o
problema que tira o sono – e o sustento – de todos eles.
“Não... Nós não somos da Odebrecht.” A apresentação
de repórter e fotógrafo frustra aqueles que aguardavam uma resposta da
companhia. “Mas gostaríamos de conversar um instante. É possível?” Como
as portas das casas que se abriam, abria-se um roteiro dramático: nas
pequenas casas, sem banheiros acabados, onde habitam famílias numerosas,
sustentadas basicamente com auxílio do Bolsa Família, os valores das
contas de água consomem mais da metade do rendimento das famílias.
“Às vezes é preciso escolher: comprar comida para as
crianças ou pagar a água”, explica a dona de casa Marines Cardoso de
Oliveira, que vive em um cômodo mais um banheiro inacabado, com o marido
e nove filhos, três deles com deficiência mental. Quando aparece
oportunidade, faz bicos em um bar ou em alguma fazenda, por uma diária
de R$ 30. “O Bolsa Família só dá para comprar comida para os meninos, e
vez ou outra algo para eles vestirem. O dinheiro para a água vem do meu
trabalho, que nem sempre aparece”, diz.
Com uma conta de R$ 208,87, vencida há um mês,
teme o corte do serviço. Com isso, o jeito é recorrer a um lago ali
próximo, de onde criadores retiram água para o gado. “Já me deram aviso.
Se eu não pagar, vão cortar. Como eu vou fazer para ter água e dar de
comer aos meninos?”
A história se repete de casa em casa. Quem não
consegue pagar recorre a fontes alternativas e inseguras, como poços,
cisternas e os próprios rios, que tem deixado muita criança contaminada
por vermes e bactérias. A Secretaria de Saúde do Pará não tem dados
sobre casos de diarreia e vômito, sintomas mais comuns, porque não são
de notificação compulsória.
“Agora somos obrigados a pagar a água, mesmo sem
poder. Muitas vezes tiro dinheiro da merenda dos meninos para dar conta
desse gasto. Vai chegar a hora em que não vamos dar conta de pagar. E o
que vamos fazer?”, lamenta o trabalhador rural desempregado Claudiborges
Leal, que mora em uma casa de três cômodos, sem banheiro, com a mulher e
cinco filhos.
“Tem que tirar dos meninos, não tem jeito”, completa a
servente de escola Raimunda Carvalho dos Santos, que vive em três
cômodos com o marido e três filhos. A conta de julho, quando foi feita a
entrevista, era de R$ 168. “Para pagar tem que tirar da alimentação das
crianças e do material da escola. Como vou pagar se não fizer assim?”,
lamenta olhando para o chão, envergonhada. “Se cortarem, vou ter que
pegar no poço do vizinho. Mas não é boa. Fico entre a cruz e a espada.”
Água para quem?
O drama da água de São João do Araguaia começou em
março de 2014, quando o prefeito João Neto Alves Martins (PTB), lançou o
edital 49/2014 para selecionar concessionária para os serviços de água e
esgoto. Em 2007, uma lei municipal foi aprovada para atrair
investimentos e “manter adequadamente esse serviço essencial”.
Até então, a prefeitura distribuía gratuitamente a
água sem tratamento que retirava do rio Araguaia. Porém, a gratuidade
foi proibida pelo decreto que regulamentou o Plano Municipal de
Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário (PMAE), de março de 2014.
A população não foi ouvida sobre a mudança. A única
audiência pública reuniu representantes do poder público e da iniciativa
privada. Para piorar, o PMAE permite que as tarifas sejam definidas no
contrato de concessão.
A empresa Hidro Forte Administração e Operação, de
Tocantins, venceu a concorrência ao prometer a menor tarifa. Em setembro
do ano passado, porém, foi comprada pela Odebrecht Ambiental Pará, que
não falou sobre a negociação. Por telefone, um dos diretores, que não se
identificou, disse apenas que foi criada uma subsidiária a partir da
cisão das empresas. “Não temos condições de dar mais precisão pela
situação contratual”, disse.
A mudança é ilegal, conforme o advogado especialista
em direito administrativo e societário Flávio Guberman. “Para ser legal,
a possibilidade de alteração deve estar descrita no contrato.” O
prefeito se limitou a dizer que possui toda a documentação e que houve
opção por uma água de qualidade “porque as águas estão muito poluídas. E
a Odebrecht tem conhecimento, recursos e uma trajetória em saneamento
básico. Preferimos migrar”. Ele afirmou ainda que a empresa faz obras de
ampliação e tratamento da água, mas não soube dizer o que está sendo
feito.
“Fomos surpreendidos pelos contratos com a Odebrecht.
Não pudemos fazer audiência pública nem consultar a população. Quando o
serviço era público, não havia cobrança. A Odebrecht assumiu, não
implantou melhorias, não trata a água e cobra caro”, reclama o vereador
Benisvaldo Bento da Silva (PMDB). “Passaram três meses e a conta que
chega na casa das famílias fica entre R$ 150 e R$ 300. Tem pessoas que
não têm renda nenhuma e têm que pagar isso”.
A tarifa mínima cobrada em São João do Araguaia é de
R$ 18,28 para 12 metros cúbicos, segundo a Odebrecht. Em São Paulo, por
exemplo, é de R$ 20,62 por 10 metros cúbicos. Já a tarifa social, para
famílias de baixa renda, é R$ 7. No Pará, onde há sistemas públicos de
distribuição em muitos municípios, a tarifa média é a segunda mais
barata do país: R$ 1,64 por metro cúbico, atrás apenas do Maranhão (R$
1,62). Os dados são do Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgoto de
2013, do Ministério das Cidades.
Água mineral
“Mãe, mãe, o retratista pode tirar retrato de eu mais
o papagaio?”, pergunta Rafaela Dias Palone, de 7 anos, correndo para
dentro de casa, no distrito Rio Vermelho, mais conhecido como Gogó da
Onça, em Xinguara. Apesar de mais desenvolvida entre as visitadas –
única com Índice de Desenvolvimento Humano médio (0,659) –, toda sua
população mora em casas de madeira.
A mãe de Rafaela, Ana Carolina Dias Palone, cuidava
da filha mais nova, de 5 anos, que há uma semana tinha problemas no
estômago e rins devido ao excesso de cloro na água. “O médico disse que
muitas crianças estão doentes por causa disso. O jeito foi começar a
comprar água mineral, mas é muito caro.”
Segundo o posto de saúde do distrito, muitas crianças
ainda adoecem por causa do cloro na água. “Antes era mais, porque os
níveis de cloro eram muito altos. Para ter uma ideia, a faxineira nem
estava usando água sanitária para lavar os lençóis do posto”, conta.
“Depois de muita reclamação melhorou, mas as pessoas mais sensíveis,
sobretudo crianças, ainda sentem dor de estômago, diarreia e vômito.
Algumas também chegam com irritações na pele, porque tomaram banho com
água com muito cloro.”
Não há dados sobre esses casos na Secretaria de Saúde
do Pará e nem na de Xinguara. “Sabemos que há três anos eram mais
frequentes, mas não sabemos se por conta da água ou do alcance dos
programas do governo federal, como vacinas e vitaminas”, diz a
secretária-adjunta de Saúde de Xinguara, Maria da Glória Barbosa.
De acordo com a Odebrecht, são seguidos todos os
padrões de tratamento de água preconizados pelo Ministério da Saúde e
há monitoramento constante da qualidade da água. A prefeitura nega. De
acordo com o coordenador de monitoramento Marconi Ribeiro, o
acompanhamento deveria ser mensal, com o envio de amostras de diferentes
locais a um laboratório central, em Conceição do Araguaia. “A última
coleta foi feita em maio e não tivemos acesso aos resultados. Está
parada por causa de uma licitação para compra de materiais”, afirma
Ribeiro.
Segundo ele, por causa do excesso de cloro e das
contas altas, as famílias pegam água em poços. “Há muitos coliformes
fecais nesses poços porque o saneamento básico é ruim. Por isso até as
famílias de baixa renda acabam tendo de comprar galões de água mineral”,
diz.
Em Xinguara, apenas 30% da população tem acesso à
água tratada, que a Odebrecht retira de uma barragem num pequeno
córrego. A barragem deverá ser ampliada para triplicar sua capacidade,
bem como a rede distribuidora.
“Não atendemos mais porque o córrego é pequeno.
Na estiagem a qualidade piora com aumento da matéria orgânica, escura,
que requer mais produtos químicos. Com um lago maior e mais profundo, a
qualidade melhora”, diz a engenheira da Odebrecht que não quis se
identificar.
A água sem qualidade é problema também a 200
quilômetros dali, em São Geraldo do Araguaia. Muitos dos moradores
precisam comprar água mineral por causa do excesso de cloro. As contas
são as mais caras da região: R$ 31,10 para 10 metros cúbicos. Desde
agosto, o promotor de Justiça no município, Agenor de Andrade, está
reunindo as reclamações. “Vamos instaurar procedimento administrativo
para uma possível ação civil pública contra a Odebrecht”, afirma.
O Rio Araguaia é outra alternativa a que a população
recorre contra as contas caras. Na pequena São Geraldo, com suas casas
de madeira e ruas de terra por onde circulam pessoas, porcos e galinhas,
as roupas são lavadas onde também há pescaria. “A água da rua vem suja
ou cheia de cloro. Para tudo que preciso uso o rio”, reclama a pescadora
Silvia Moreira, que mora em uma casa onde só há uma torneira e um vaso
sanitário, sem descarga.
“Uma vizinha contou que colocou a roupa de molho
e no dia seguinte apareceu manchada por causa do cloro”, diz a dona de
casa Rosa Maria, de São Geraldo do Araguaia, mãe de duas meninas, uma de
10 anos e outra de 9 meses. “Às vezes a água vem muito suja, outras com
bastante cloro. Chega a arder para beber. Acabamos tendo que comprar
água mineral para dar para a bebê. Mas não temos dinheiro para as duas. O
que vamos fazer?”
Cidade alagada
O esforço da Odebrecht para assumir os serviços de água e esgoto de São João do Araguaia não deve durar muito: em aproximadamente cinco anos, a cidade será uma das dez alagadas na construção da Hidrelétrica de Marabá. A obra será tocada pela construtora Camargo Corrêa e a estatal Eletronorte, com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).O projeto terá duas eclusas e um lago. Serão inundados 1.115 quilômetros quadrados de terras em Marabá, São João do Araguaia, Bom Jesus do Tocantins, Brejo Grande do Araguaia, Nova Ipixuna e Palestina do Pará, no Pará; em Ananás, Esperantina e Araguatins, no Tocantins, e São Pedro da Água Branca e Santa Helena, no Maranhão. A obra custará R$ 12 bilhões e terá capacidade de produção de 2.160 megawatts.
A Odebrecht não atendeu à reportagem para falar sobre investimentos em saneamento em uma cidade que será alagada. Para Cristiano Medina, do Movimento dos Atingidos por Barragens, trata-se de empresas que disputam e administram tudo ali. “É o controle do território dos rios e a mercantilização dos recursos naturais.”
O esforço da Odebrecht para assumir os serviços de água e esgoto de São João do Araguaia não deve durar muito: em aproximadamente cinco anos, a cidade será uma das dez alagadas na construção da Hidrelétrica de Marabá. A obra será tocada pela construtora Camargo Corrêa e a estatal Eletronorte, com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).O projeto terá duas eclusas e um lago. Serão inundados 1.115 quilômetros quadrados de terras em Marabá, São João do Araguaia, Bom Jesus do Tocantins, Brejo Grande do Araguaia, Nova Ipixuna e Palestina do Pará, no Pará; em Ananás, Esperantina e Araguatins, no Tocantins, e São Pedro da Água Branca e Santa Helena, no Maranhão. A obra custará R$ 12 bilhões e terá capacidade de produção de 2.160 megawatts.
A Odebrecht não atendeu à reportagem para falar sobre investimentos em saneamento em uma cidade que será alagada. Para Cristiano Medina, do Movimento dos Atingidos por Barragens, trata-se de empresas que disputam e administram tudo ali. “É o controle do território dos rios e a mercantilização dos recursos naturais.”
http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/112/onde-a-agua-e-abundante-mas-falta-3044.html
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