- País tem 21 milhões de microempreendedores, mas apenas 10% participam da rede solidária dos bancos populares, que oferece empréstimos e promove renda e inclusão social
O microcrédito produtivo, voltado não ao consumo, mas a atividades de geração de renda, é amparado pelo Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado (PNMPO)
por Helder Lima, da Rede Brasil Atual - Sociedade e Micro Economia ou Economia Solidária (fonte no final do texto)
Foto Paulo Pepe/RBA
Flávia, dona Maria, Carmelita, Edna e Maria das Dores: crédito com aval solidário alavanca pequenos negócios
Uma das várias faces da
exclusão no Brasil é a de serviços bancários – sobretudo, de crédito
para quem tem uma boa ideia na cabeça e nenhum recurso à mão. O país
conta com 21 milhões de microempreendedores, a maioria informais, que só
encontram empréstimos para investir no próprio negócio, seja um
tabuleiro de algodão-doce ou algo mais sofisticado, em bancos populares e
redes de crédito solidário, que se expandem lentamente. No primeiro
semestre deste ano, as operações de microcrédito movimentaram R$ 5,4 bilhões, beneficiando 2,4 milhões de pessoas, pouco mais de 10% do universo estimado desses empreendedores.
“É pouco. Tivemos um seminário com especialistas e
técnicos do Banco Central em que se falava que o microcrédito representa
0,2% do crédito nacional. Temos um grande caminho a percorrer”, afirma o
diretor-executivo Almir da Costa Pereira, do Banco do Povo Crédito
Solidário, em Santo André, no ABC paulista, e também diretor da
Associação Brasileira de Entidades Operadoras de Microcrédito e
Microfinanças (Abcred), que congrega 39 instituições.
O microcrédito produtivo, voltado não ao consumo, mas
a atividades de geração de renda, é amparado pelo Programa Nacional de
Microcrédito Produtivo Orientado (PNMPO), estabelecido por uma lei
gestada no então Ministério do Trabalho e Emprego em abril de 2005. “A
nossa intenção com essas linhas de crédito é fortalecer as atividades, é
dar a esses empreendedores um maior poder de barganha junto aos
fornecedores, melhorar a apresentação dos estabelecimentos comerciais,
quando é o caso, criar a possibilidade para que eles possam ter estoques
mais competitivos e atraentes para os clientes”, afirma a gerente do
Ambiente de Microfinanças Urbanas do Banco do Nordeste, Rosa Ribeiro.
Atualmente, o Banco do Nordeste é o que tem a maior
operação de microcrédito da América do Sul, com experiência de 18 anos
nesse segmento. O banco público mantém duas linhas para o setor, para
microempreendedores urbanos e rurais. Segundo os dados mais recentes do
agora Ministério do Trabalho e Previdência Social, os tomadores urbanos
de crédito são a maior parte dos clientes, com predominância de 74,51%
no período de abril a junho deste ano. Uma das exigências para contrair
um financiamento é que o empreendedor tenha faturamento bruto anual de
no máximo R$ 120 mil.
Nove em cada dez contratantes de crédito buscam
recursos para capital de giro. As mulheres são predominantes nos
empreendimentos – respondem por 62,5% dos valores concedidos e por 64,8%
das operações realizadas no segundo trimestre. E 80% do movimento no
mesmo período beneficiou empreendedores da região Nordeste, graças à
atuação da instituição financeira federal, de acordo com o ministério.
Desde que atua nesse segmento, o Banco do Nordeste atendeu a mais de 3,5
milhões de trabalhadores, em um total de operações que ultrapassam R$
26 bilhões.
Bons pagadores
Tudo isso só é possível com juros relativamente
atraentes no país que mantém as mais altas taxas de juro real do mundo.
Segundo Almir Pereira, as taxas para o microcrédito variam entre 2,5% e
4% ao mês, o que não é exatamente dinheiro barato, mas nem se compara
com o ágio exorbitante praticado pelos bancos comerciais em suas
diferentes linhas para o consumidor final. Ele destaca que os usuários
do microcrédito são bons pagadores e sempre fazem planos condizentes com
sua capacidade, devido à orientação que recebem. “Se o cliente está
investindo e a gente quer que o negócio dê certo, para que ele possa
fazer outros investimentos, temos de ter em mente que por trás do
microcrédito há famílias, mais de 60% dos clientes de microcrédito são
mulheres. Então, é um crédito acima de tudo muito responsável”, define o
diretor do banco de Santo André.
“O dinheiro empenhado no negócio ajuda a dar um
dinamismo, e eu aplico o recurso em produtos de qualidade”, afirma a
cabeleireira Flávia da Silva, moradora da Vila Feital, da vizinha Mauá,
confirmando a necessidade do recurso para capital de giro. Flávia
participa há três anos de um grupo solidário, com mais quatro mulheres, e
os empréstimos foram incorporados à rotina de trabalho do grupo, de tal
modo que eles são renovados assim que quitados. Uma característica do
grupo solidário é que cada participante funciona como garantia da
credibilidade do outro. Se um falha com a prestação, os outros cobrem. O
sistema resulta em baixíssima inadimplência, em alguns casos, inferior a
1%, como no Banco do Nordeste.
Pereira acredita que a fórmula dos grupos solidários
está consagrada. Juridicamente, os bancos solidários são representados
pela figura da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público
(Oscip). “É comum se uma pessoa, em um determinado mês, tem algum
problema, ou fica doente, ou alguém da família tem dificuldade, ela
conversa no grupo e nós orientamos para isso. O grupo diz ‘este mês você
não está podendo pagar, então nós vamos ratear a sua parcela, mas no
mês que vem você devolve’, e assim vai. Essa conduta ajuda a enfrentar
momentos difíceis e a manter um ciclo virtuoso: as pessoas encontram de
fato solidariedade e capacidade de investir juntas”, defende Pereira. O
Banco do Povo de Santo André mantém atualmente cerca de 1.200 grupos
solidários.
Para Maria das Dores Souza de Oliveira, participante
do grupo de Flávia e vendedora de roupas, queijos e chocolates na época
de Páscoa, o dinheiro é bem-vindo principalmente para sua atividade com
as roupas, pois comprando seus estoques à vista ela consegue descontos
nos fornecedores. “Pretendo continuar no grupo”, afirma. Para este final
de ano, a ideia era renovar seu empréstimo pela terceira vez desde que
passou a integrar o grupo, agora aumentando o valor de R$ 1.000 para R$
1.500. O pagamento é dividido em parcelas quinzenais. “Nunca tive
problema para pagar, eu vou para a rua todo dia e sempre entra
dinheiro”, diz.
A chefe da equipe solidária, Carmelita Maria Leandro,
há nove anos conta com os recursos do microcrédito para trabalhar. Ela
busca roupas no interior paulista, principalmente em Ibitinga, Jacutinga
e Monte Sião, para vender em Mauá. “Viajo a cada três meses para fazer
compras, pago uma parte à vista e outra a prazo. O dinheiro do banco me
ajuda a fazer essas compras”, afirma, destacando que as parcelas
quinzenais são mais adaptadas ao perfil do grupo, que tem faturamento
constante, mas de pequenas quantias. Nesse tempo, o único problema que
tiveram foi com uma pessoa que participou para dar golpe, e acabou
levando R$ 1.200 depois que pagou uma prestação e tomou chá de sumiço. O
valor total das parcelas do grupo é lançado num mesmo carnê.
Abaixo da cota
Apesar da predominância do setor urbano na concessão
de microcrédito, na região Sul projetos ligados à agricultura familiar
estão consolidando experiências positivas com o microcrédito, segundo o
coordenador-geral da Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS), Ari
Aloraldo. “O dinheiro é carimbado quando se pensa em crédito, é preciso
encontrar soluções para isso”, afirma Ari, referindo-se ao baixo volume
de recursos do sistema bancário destinados ao segmento. Uma resolução do
Banco Central determina que o dinheiro disponível ao microcrédito deve
representar 2% do total de recursos “carimbados” para o crédito no país –
dez vezes mais do que o volume relatado no início da reportagem.
Criada em 1999 pela CUT, com apoio do Dieese e outras
instituições que representam os trabalhadores, a ADS atua em diferentes
projetos envolvendo economia solidária e percebe o quanto este setor
ainda pode crescer no país, se houver suporte. “As cooperativas de
crédito funcionam, deram certo, e os empreendimentos na região Sul
também participam desse processo, nas áreas de alimentos e bebidas. O
próprio MST tem o arroz orgânico, é o maior produtor desse produto na
América Latina. O pessoal do Sul é pioneiro em cooperativismo, tem muita
coisa bacana”, diz Ari.
Desde 2005, no entanto, o conceito do microcrédito
vem se consolidando. “O BC, os bancos privados, os bancos públicos, as
organizações sem fim lucrativo, as cooperativas, todos os que estão
operando dentro do sistema ou na periferia, como é o caso das Oscips,
têm clareza desse conceito. Houve um período antes do programa que era
muito comum os bancos quererem adotar o argumento de que o microcrédito
era para conduzir o recurso da exigibilidade para outros fins e nós
superamos isso”, diz Pereira.
A desigualdade entre as políticas de crédito para as
grandes e pequenas empresas não é compatível com o potencial do setor,
que movimenta apenas 27% do PIB, segundo o Sebrae, por meio de 9 milhões
de empreendedores – em países como Alemanha e Itália, esse segmento da
economia chega a concentrar 60% do PIB.
Em um momento em que 1,2 milhão de vagas com carteira
assinada são eliminadas em 12 meses, até setembro, e milhões procuram
emprego devido ao aprofundamento da recessão, pode ser importante olhar
para esse público potencialmente interessado em se candidatar ao
autoemprego. O Banco do Povo de Santo André deve fechar o ano com
aumento de 20% do volume de operações. “Uma política de microcrédito
mais profunda para um período de dificuldades poderia ser uma das
saídas. Assim como a gente descobriu que o Bolsa Família produziu o
aquecimento de muitas economias locais, o microcrédito pode ter efeito
semelhante”, afirma Pereira.
Importância do poder local
Maricá, na região metropolitana do Rio de Janeiro,
com 150 mil habitantes, foi a primeira cidade no país a adotar a
tecnologia de cartão eletrônico, de débito, para dar suporte à sua moeda
social, a mumbuca. Essa iniciativa, adotada desde 2013, surgiu para
combater a pobreza e estimular a economia da cidade. A prefeitura
investe na moeda social eletrônica, garantindo um subsídio mensal de 85
mumbucas (cada mumbuca equivale a R$ 1) para 13 mil famílias com renda
de até um salário mínimo, e como a moeda social só é aceita em
estabelecimentos comerciais cadastrados, a economia regional também
experimenta aumento de vendas.
O país tem hoje mais de 100 moedas sociais
reconhecidas pelo Banco Central. Mas a tecnologia eletrônica ainda é
novidade. A mumbuca eletrônica foi desenvolvida com suporte do Instituto
Palmas, de Fortaleza, referência em projetos de economia solidária no
país. Em Maricá, o programa absorve R$ 1,2 milhão por mês do orçamento
da prefeitura, mas para o próximo ano ele será ampliado para famílias
com renda de até três mínimos, elevando seu orçamento para R$ 4 milhões
por mês.
Também está nos planos da prefeitura promover ações
de microcrédito para incentivar o empreendedorismo. O incentivo será
destinado a todos os empreendedores, formais e informais. No próximo
ano, serão inaugurados ainda dois centros públicos de economia
solidária, que abrigarão incubadoras de empreendimentos.
Segundo o secretário-adjunto de Economia Solidária, André Braga (foto),
o município planeja ainda realizar outra inovação, que é a plataforma
“e-dinheiro”, um aplicativo de celular que funcionará em qualquer tipo
de aparelho, mesmo sem internet, permitindo operações de depósito,
transferência, pagamento de contas com código de barras. A tecnologia
também foi desenvolvida pelo Instituto Banco Palmas e vai fazer parte da
rede nacional de bancos comunitários. Para 2016, a prefeitura entrará
na área de abastecimento, abrindo mercados de economia solidária, com
produtos de assentamentos da reforma agrária. Inicialmente, serão
construídos três mercados, dois deles próximos a conjuntos habitacionais
do programa Minha Casa, Minha Vida.
Enquanto a candidata a “capital de economia
solidária” no país planeja ampliar seus projetos, consumidores e
comerciantes experimentam na prática uma expansão de negócios já
consolidada com a mumbuca. “É uma moeda que veio como benefício para a
população”, afirma Flávio Carvalho Pinto, que gerencia uma farmácia a
preços populares no centro de Maricá. Segundo ele, os clientes valorizam
ao máximo o dinheiro no cartão eletrônico. “As pessoas deixavam de
comprar xampu, por exemplo, para comprar leite e fraldas para as
crianças”, diz Flávio, que viu suas vendas aumentarem de 15% a 20%.
O gerente de loja de material de construção Cláudio
Barbosa confirma o aumento de negócios com a moeda social, em torno de
20%. “Todos ganham e o cliente tem facilidade de pagar porque não é
preciso boleto, é tudo automático.”
Crédito e cidadania
E para quem acha que cidade grande não tem o que a
aprender com as pequenas, em São Paulo, o prefeito Fernando Haddad
inaugurou no início de novembro um centro destinado a pessoas em
situação de vulnerabilidade, que vai desenvolver ao mesmo tempo projetos
pautados por direitos humanos e economia solidária, com suporte de uma
incubadora pública de empreendimentos voltada ao cooperativismo. “É uma
iniciativa importante pela reunião da economia solidária com os direitos
humanos. É extremamente interessante. O que conseguimos fazer aqui
serve de inspiração a todo o Brasil”, afirma o secretário de Economia
Solidária do Ministério do Trabalho e Previdência, Paul Singer,
destacando que nem por isso as demais regiões deixam de ter experiência
em empreendimentos solidários. “Temos também muito a aprender com
amazonenses, nordestinos, indígenas e quilombolas.”
Quem visita o centro tem a oportunidade de conhecer
iniciativas concretas que se consolidam na perspectiva da economia
solidária. Uma delas é a experiência do polo de ecoturismo criado na
zona sul de São Paulo, envolvendo os bairros de Parelheiros, Marsilac e
Ilha do Bororé. Segundo o diretor executivo do polo, Roberto Carlos, o
projeto envolve 80 empreendimentos. “O polo é uma conquista da ação
política dos movimentos populares”, afirma. Graças ao projeto, desde
março os empreendedores trabalham de forma coletiva, realizando compras,
por exemplo, de insumos comuns. Este ano foi realizado o primeiro
festival de inverno do polo, envolvendo 55 empreendedores, atraindo 22
mil visitantes e com renda de R$ 675 mil. “Com as metodologias da
economia solidária, todos saem ganhando.”
Para saber mais
Associação Brasileira das Entidades Operadoras de Microcrédito e Microfinanças: www.abcred.org.br
Banco do Povo Crédito Solidário: www.bpcs.org.br
Banco do Nordeste: www.bnb.gov.br
Instituto Palmas: www.institutobancopalmas.org
Prefeitura de Maricá: www.marica.rj.gov.br
Associação Brasileira das Entidades Operadoras de Microcrédito e Microfinanças: www.abcred.org.br
Banco do Povo Crédito Solidário: www.bpcs.org.br
Banco do Nordeste: www.bnb.gov.br
Instituto Palmas: www.institutobancopalmas.org
Prefeitura de Maricá: www.marica.rj.gov.br
Legenda fotos:
capital de giro
Flávia, dona Maria, Carmelita, Edna e Maria das Dores: crédito alavanca pequenos negócios
André Braga: município deve implantar o “e-dinheiro”
Impulso Em Maricá (RJ) na farmácia ou na casa de material de construção, o freguês paga em mumbucas no cartão eletrônico
http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/112/o-credito-micro-mas-o-resultado-pode-ser-gigante-3713.html
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