O mundo
partidário brasileiro, ou o que resta dele, caminha para uma redefinição de
campos e de linhas de força. À esquerda do PT, parte do que era hegemonizado
por ele se desgarrou, como é o caso do PCdoB
PT vem
colhendo derrotas sucessivas desde o início de 2015. Erros de avaliação,
imobilismo e falta de comando foram os principais móveis dessa desditosa
caminhada. A rigor, os sinais de perda de combatividade e virtude já se
verificavam nas eleições de 2014. Na reta final do embate entre Dilma e Aécio
foi a mobilização de setores da sociedade civil, da intelectualidade e de
petistas afastados e desgostosos que garantiu a vitória ante a ameaça do
triunfo do tucano.
Nas andanças
pelas sendas espinhosas das derrotas o mais duro revés foi ter sido o PT apeado
do poder pelo golpe do impeachment. A segunda vicissitude duríssima, que se
equivale à primeira, consiste em ver Lula preso, com forte tendência de ficar
fora do pleito de 2018. No meio desses dois tormentos, o devastador resultado
das eleições municipais de 2016, que reduziu praticamente pela metade o número
de prefeituras comandadas pelo partido. Se o PT não havia respondido de forma
satisfatória ao longo de todo o processo do golpe-impeachment, o mesmo
aconteceu durante via crucis judicial de Lula. A direção pareceu acreditar mais
nos juízes e nos embates advocatícios do que na mobilização social.
Acomodado
às sombras do poder nos anos de bonança, adoentado pelo burocratismo, comandado
por direções fracas nas últimas gestões, o PT foi perdendo o vigor da luta e as
virtudes do combate dos tempos de ascensão, ao mesmo tempo em que foi perdendo
a capacidade de formulação e enfraquecendo sua competência para ler corretamente
as conjunturas e de deduzir ações eficazes a partir dessas leituras.
O PT dos
últimos tempos está longe de ser o PT dos comandos de Lula, de José Dirceu e de
José Genoino. Naqueles tempos, o partido tinha unidade de comando, mesmo sendo
uma agremiação de formação plural. Já em 2014 Lula fez várias admoestações
sobre a necessidade de o PT mudar, se renovar, se revigorar. A rigor, com a
atual direção, ocorre o mesmo que ocorria durante o movimento pela derrubada de
Dilma: os dirigentes são generais sem exército e os militantes são um exército
sem generais.
A partir
de uma tática correta - a de manter a candidatura Lula - a direção do PT vem
dando sinais, nas últimas semanas, de que está disposta a construir uma nova
derrota. A presidente do partido, Gleisi Hoffmann, vem se especializando em dar
declarações politicamente inconvenientes. O seu maior feito nesta arte
consistiu em emitir uma nota em defesa do mandato de Aécio Neves quando o STF o
havia suspendido.
Agora,
declarou que o nome de Ciro Gomes não passa no PT "nem com reza
brava". Declaração desnecessária e inconveniente. Rendeu-lhe uma
retribuição de Ciro dizendo que sente pena dela. Ademais, a declaração derruba
pontes num momento em que é preciso agregar as forças progressistas para enfrentar
a direita, o conservadorismo e o neofascismo. Mas parece que Gleisi e outros
dirigentes do PT estão dispostos a empurrar forças para o lado do inimigo.
A partir
da declaração de Gleisi as redes sociais foram tomadas por uma onda de
sectarismo de setores petistas contra Ciro. Engraçado que estes setores se
incomodam com Ciro e não se iraram com Michel Temer, repetido duas vezes como
vice de Dilma. Agora, tomados pela síndrome da traição, adquirida com Temer e
sua quadrilha, já antecipam uma suposta traição de Ciro. Não se pode negar a
Ciro o direito de fazer o que Lula fez: tornar-se palatável às elites (Carta ao
Povo Brasileiro) e encaminhar uma reforma da Previdência, entre outras coisas.
Um eventual governo Ciro será conciliador como foram os governos petistas e como
será um eventual novo governo do PT. Quem não concorda com este caminho
precisa, por coerência, votar em Guilherme Boulos.
Gleisi e
os setores sectários do PT deveriam aprender com Boulos e Manuela: mesmo
criticados inúmeras vezes por petistas, colocaram-se na linha de frente na
solidariedade a Lula e na defesa do direito de ele ser candidato. Boulos,
inclusive, convenceu a maior parte do PSol, partido recorrentemente atacado por
petistas, a defender Lula. A liderança política, além da coragem, precisa ter
autocontrole, não deixar se dominar pelas emoções próprias descurados das
consequências políticas que eles proporcionam. Dirigentes não podem jogar
palavras ao vento sem pressupor que elas não geram consequências.
Parece
que o PT não consegue se curar do vício da arrogância - mal adquirido quando o
partido estava no poder. O PT quer a solidariedade de todos, mas se mostra
pouco propenso a ser solidário com os outros; quer a compreensão de todos e se
mostra pouco compreensivo com os erros e com os acertos dos outros. Sua
arrogância o leva para o unilateralismo e para o isolamento. Pensa ser a
encarnação de uma verdade superior e não aceita críticas. Vê-se portador de um
destino manifesto e não consegue aceitar a ideia de que boa parte da crise que
está aí se deve aos seus erros. Foge de sua responsabilidade.
Aqui é
preciso registrar duas coisas: o PT tem um imenso capital político e social
acumulado por mais de três décadas de lutas. Os dirigentes do partido e seus
setores sectários não têm o direito de destruir esse capital, pois ele pertence
ao povo. Da mesma forma em que foi erguido, pode ruir se não houver virtude e
competência para comandá-lo. A virtude combativa e a boa fortuna podem estar se
deslocando para outros pontos e encarnar-se em outros partidos e outros
líderes. Sem as virtudes e a capacidade de comando de outrora, a direção do PT
não consegue mais manter a fidelidade daqueles tempos. Em que pese toda a
mobilização de vontades em torno de Lula, o fato é que a direção partidária
suscita muitas desconfianças.
Da tática
correta à estratégia da ilusão
Gleisi e
outros dirigentes vêm declarando que Lula sairá da prisão para a presidência da
República. De três uma: ou se acredita que o Judiciário libertará Lula, algo
inverossímil até o momento; ou se acredita que o PT tem força de mobilização
capaz de libertá-lo, coisa que não está sendo vista; ou se acredita que Lula é
um novo Daniel, que será salvo na cova dos leões pelo Anjo do Senhor.
Admitindo-se a hipótese de que Lula seja liberto nesta semana pelo STF, haverá
pela frente a enorme encrenca da viabilização legal de sua candidatura.
Dizer que
Lula sairá da cadeia para a presidência da República cria, na militância, a
crença de uma vitória sagrada. Criaram-se crenças em torno do "não
passarão", do "nenhum direito a menos" etc., e tudo ruiu. A
condução errada do partido vai gerando a despolitização de uma militância
ressentida que vai assumindo a tese igualmente despolitizada do "Lula ou
nada".
Assim, da
tática correta da manutenção da candidatura Lula, dirigentes petistas parecem
estar construindo a estratégia da ilusão. O que fazem com isso? Correm todos
para o muro das lamentações e choram o infortúnio de Lula, fazem a exegese de
seu sofrimento. Enquanto isso a política real continua correndo e o PT bloqueia
a sua própria tática, se ausenta do debate eleitoral e programático e não
oferece uma perspectiva de poder. A sua perspectiva está encarcerada em
Curitiba, exilada no silêncio e na dúvida.
É um
direito de qualquer partido, que tenha condições para tal, querer exercer a
hegemonia de um campo político determinado, dirigindo-o, agregando-o,
ampliando-o e reforçando-o. Mas hegemonia implica concessões aos aliados,
capacidade persuasiva de convencer esse campo pela justeza das propostas, da
distribuição do poder e da capacidade e virtude de comando.
Hegemonia
é diferente do hegemonismo. Este significa a tentativa de imposição pela força
real ou pressuposta e/ou pela suposição de uma superioridade qualquer.
Normalmente, o hegemonismo é exercido por forças políticas (e militares) que
alcançaram o poder em seus patamares mais altos. Quando o hegemonismo se
manifesta em um Império, Estado ou partido é um sinal de declínio e decadência.
Tais forças não conseguem mais manter as lealdades pela evidência de sua força
própria e pela justeza de suas propostas e de seu comando.
O mundo
partidário brasileiro, ou o que resta dele, caminha para uma redefinição de
campos e de linhas de força. À esquerda do PT, parte do que era hegemonizado
por ele se desgarrou, como é o caso do PCdoB e, parte, busca constituir-se como
uma força própria, que é o PSol. Outros parceiros do PT, o PSB e o PDT, também
buscam caminhos próprios. Os principais aliados do PT em seus governos - o PMDB
e partidos do centrão - foram para o golpe. Se Lula puder concorrer e vencer, o
PT poderá ganhar tempo para se reconstituir, buscar um prumo, lembrando sempre
que o poder torna arrogantes forças pouco virtuosas, degradando-as. Se Lula não
concorrer, o PT será submetido a poderosas forças centrífugas internas e
externas e terá que enfrentar a sua própria verdade - algo que não fez até
agora.
*Aldo
Fornazieri - cientista político e professor da Fundação Escola de
Sociologia e Política (FESPSP)
https://www.brasil247.com/pt/colunistas/aldofornazieri/353896/PT-construindo-uma-nova-derrota.htm
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