“Habermas disse que toda vez que perdemos a referência do horizonte, a
gente se debruça sobre amenidades. Temos hoje uma narrativa inapropriada que
nos leva à acomodação e a saídas individuais”
“Sociedade que deu origem ao PT não existe
mais. Estamos com um retórica envelhecida”, Pochamann
por Marco Weissheimer no SUL 21 e no blog de Luiz Müller
- Sociedade e Luta Popular por Gestão Democrática
Marcio Pochmann participou do
seminário “Os Desafios de uma Gestão de Esquerda em meio à crise Democrática”,
em Porto Alegre. (Foto: Luiza Castro/Sul21)
Estamos
vivendo uma mudança de época profunda na história brasileira que pode ser
comparada aquelas que ocorreram na década de 1880, quando ocorreu a abolição da
escravatura, e na década de 1930, quando o país começou o seu processo de
industrialização. As mudanças se dão em diversos níveis que vão desde o perfil
demográfico do país, passando pela estrutura de classes, pelo funcionamento do
trabalho e da economia e chegando à dinâmica das cidades. É preciso ter esse
horizonte mais amplo como referência para se pensar os desafios políticos
colocados por essa realidade que já implodiu o pacto político instaurado pela
Nova República. O diagnóstico é do economista Marcio Pochmann, presidente da
Fundação Perseu Abramo, do Partido dos Trabalhadores (PT), que esteve em Porto
Alegre em 12/ago para falar sobre “os
desafios de uma gestão de esquerda em meio à crise democrática”, tema
proposto pelo PT de Porto Alegre para pensar a atuação do partido nas eleições
municipais do ano que vem.
Segundo o
presidente do PT de Porto Alegre, Rodrigo Campos Dilelio, o seminário realizado
no auditório do Sindicato dos Bancários deu início a um processo de debate
programático do partido sobre a cidade, tendo em vista as eleições de 2020. “O
PT está fortemente engajado na construção de uma frente de esquerda em Porto
Alegre”, anunciou o dirigente municipal do partido. Debate programático, frente
de esquerda, política de alianças… tudo isso passa, enfatizou Marcio Pochmann
em sua fala, pela compreensão da nova configuração da sociedade brasileira.
“Habermas disse que toda vez que perdemos a referência do horizonte, a gente se
debruça sobre amenidades. Temos hoje uma narrativa inapropriada que nos leva à
acomodação e a saídas individuais”, disse o economista.
Debate com Pochmann lotou
auditório do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre. (Foto: Luiza
Castro/Sul21)
Essa
narrativa, defendeu Pochmann, diz que estamos vivendo um período de
transformações em relação às quais não temos muito o que fazer além de nos
adaptar a elas. Ele apontou como exemplos dessa narrativa os discursos da
globalização financeira e da revolução tecnológica, dois fenômenos globais
sobre os quais não teríamos muita capacidade de influência. A inovação
tecnológica, nesta narrativa, seria uma das principais responsáveis pelo
desemprego e exigiria que os trabalhadores se preparassem melhor para enfrentar
a nova realidade do mercado de trabalho.
Esses
discursos estão repletos de equívocos, sustentou Pochmann, que citou o fato de
países que lideram o processo de inovação tecnológica, como Alemanha, Estados Unidos
e China, não enfrentarem problema de desemprego. Ele também citou o exemplo do
setor bancário brasileiro que investiu fortemente em automação nos últimos
anos. “Temos hoje cerca de 400 mil bancários no pais, mas também
aproximadamente 1,2 milhão de correspondentes bancários no setor financeiro e
mais de 110 mil trabalhadores autônomos que prestam serviços de consultoria
neste setor. Esse discurso que relaciona inovação tecnológica e desemprego é
terrorismo” .
Estamos
vivendo a transição de uma sociedade industrial para uma sociedade de serviços,
acrescentou o presidente da Fundação Perseu Abramo. No entanto, ressaltou,
diferentemente do que ocorreu nas décadas de 1880 e 1930, essas mudanças vêm
sendo protagonizadas e capitalizadas pela extrema-direita. “Estamos vivendo um
período pré-insurrecional onde a população está extremamente insatisfeita e a
extrema-direita tem maior facilidade de conversar com o povo do que a esquerda.
Precisamos prestar muita atenção neste momento, pois estamos definindo o país
que teremos nos próximos 40 ou 50 anos”, alertou Pochmann.
“A sociedade do final dos anos 70
e início dos anos 80, que deu origem ao PT, não existe mais”, disse Pochmann.
(Foto: Luiza Castro/Sul21)
A perspectiva
histórica invocada pelo economista, em relação ao passado e também ao futuro, é
acompanhada por um diagnóstico, de certo modo, dramático para a definição do
que fazer no presente político do país: “a sociedade do final dos anos 70 e
início dos anos 80, que deu origem ao PT, não existe mais. Se seguirmos fazendo
as coisas do jeito que fizemos até aqui não teremos melhores resultados do que
os que já obtivemos”. Pochmann detalhou essa transmutação social, do ponto de
vista da estrutura de classes, que impõe novos desafios programáticos e
organizativos:
“Na
década de 80, tínhamos uma burguesia industrial no país. Hoje, a indústria
brasileira representa menos de 10% do PIB, o que equivale ao que tínhamos em
1910. Hoje, temos o predomínio de uma burguesa comercial, que quer comprar
barato e vender caro. Nos anos 80, tínhamos uma classe média assalariada, que
praticamente não existe mais. Hoje, temos uma classe média de PJs (pessoas
jurídicas) e consultores. Houve um desmoronamento do emprego clássico da classe
média. A classe trabalhadora também mudou. Cerca de quatro quintos dos
trabalhadores estão concentrados no setor terciário, nas diversas áreas de
serviços. Eles não estão mais concentrados em grandes fábricas, mas em
shoppings center, complexos hospitalares, prestando serviços para condomínios
de ricos. A classe trabalhadora está cada vez mais ligada a um trabalho
imaterial e submetida a nova organização temporal e espacial. Essa nova
realidade não faz parte do discurso dos sindicatos e dos nossos partidos.
Estamos com uma retórica envelhecida”.
“O ciclo político da Nova
República desapareceu”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)
Outra
novidade na paisagem social brasileira é a força gravitacional das igrejas
evangélicas e de grupos ligados ao crime organizado. Essa capacidade de atração
e aglutinação, defendeu o economista, deriva de sua capacidade de fornecer
respostas de curto prazo aos problemas cotidianos das pessoas, à falta de
perspectiva de futuro especialmente para a juventude pobre das periferias.
“Hoje, cerca de 80 milhões de brasileiros freqüentam semanalmente assembleias,
as assembleias de Deus. Por volta de 2032, os evangélicos já serão maioria no
Brasil, A lógica que rege esse fenômeno está mais ligada à subjetividade das
pessoas do que à racionalidade. Essas igrejas são espaços de sociabilidade onde
as pessoas podem falar sobre seus desejos e anseios. Lá elas encontram laços de
fraternidade e solidariedade. Temos que ter a humildade de reconhecer a nossa
defasagem de compreensão dessa realidade”. No entanto, ressaltou Pochmann, ao
mesmo tempo em que estão com a retórica envelhecida, os partidos e sindicatos
são mais necessários do que nunca em uma sociedade com cada vez menos diálogo e
mais individualismo. Mas terão que se reinventar.
A
expressão político-partidária dessa transformação social não é menos dramática.
“O ciclo político da Nova República desapareceu e com ele também desapareceu a
possibilidade de termos governos de conciliação. E sem a conciliação o que
temos é a polarização”, resumiu Pochmann. Esse ciclo se encerra, acrescentou,
com muitas tarefas não feitas. “Não fizemos nenhuma reforma profunda do
capitalismo. Não prendemos nenhum ditador, após uma ditadura assassina e
corrupta. O orçamento inicial previsto para a construção de Itaipu era de R$ 4
bilhões. No final, a obra custou R$ 21 bilhões. A Argentina prendeu cerca de
mil torturadores. Nós não prendemos nenhum”.
O desafio
das eleições municipais de 2020
Raul Pont: “Não foi promover a
participação e buscar radicalizar a democracia que nós erramos”. (Foto: Luiza
Castro/Sul21)
Na parte
final de sua fala, Marcio Pochmann apresentou um cenário do impacto dessas
transformações sociais na vida social das cidades e de como isso exige um
repensar radical de práticas. Um desses impactos é de natureza demográfica. A população
brasileira não vai crescer mais nos próximos anos em razão da queda da taxa de
natalidade, assinalou. Caminhamos, nas próximas décadas, para sermos um país de
240 milhões de habitantes e mais envelhecido.
Uma das
conseqüências práticas disso, no plano das políticas públicas, é a diminuição
da pressão sobre as escolas. A população de faixa etária entre zero e 14 anos
vem caindo desde 1980. Nas eleições de 2018, a parcela de eleitores com mais de
65 anos já foi maior que a dos jovens em torno de 18 anos.
Outro
fenômeno para o qual o economista chamou a atenção é o processo de
desindustrialização do país, principalmente na região Sul e Sudeste e, mais
especificamente, em São Paulo, que até bem pouco tempo era chamado de
“locomotiva do país”. Na vida dos municípios, isso teve como conseqüência
imediata o aumento das ocupações no setor de serviços. Associado à
desindustrialização, está em curso um processo de desmetropolização, com a
diminuição do crescimento das regiões metropolitanas e aumento do crescimento
de cidades menores, especialmente cidades médias. Isso não significa que a
população das regiões metropolitanas esteja diminuindo, mas sim que estão
recebendo menos migrantes e crescendo em uma velocidade demográfica menor.
Esse conjunto de fenômenos exigirá, para a definição de propostas a serem apresentadas à população nas próximas eleições, um grande esforço de aprendizado, enfatizou Pochmann. Será totalmente ineficaz acionar o piloto automático e repetir as práticas tradicionais de campanhas eleitorais realizadas na última década. Dois ex-prefeitos de Porto Alegre, Olívio Dutra e Raul Pont, fizeram intervenções comentando a conferência de Marcio Pochmann. Ambos concordaram sobre a necessidade de dar conta das implicações de todas essas transformações sociais e defenderam que as experiências positivas das administrações populares em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul devem estar também na memória desse aprendizado.
“Não foi
por promover a participação e procurar radicalizar a democracia que nós
erramos”, disse Raul Pont, lembrando a experiência que tornou o Orçamento
Participativo de Porto Alegre uma referência internacional.
Na mesma
linha, Olívio Dutra chamou atenção para o que faltou fazer ou foi feito de modo
insuficiente do ponto de vista da ampliação da democracia e da justiça social.
Nós tivemos o Ministério das Cidades, mas, por razões que são conhecidas de
todos aqui, não conseguimos levar adiante o projeto que tínhamos e ele acabou
se tornando um balcão de negócios. Os dois ex-prefeitos apostam que o
aprendizado a ser feito pode ser facilitado pela experiência dos erros e dos
acertos. “Não será fácil, mas podemos fazer. Teremos que assobiar e chupar cana
ao mesmo tempo”, resumiu Olívio.
https://luizmuller.com/2019/08/13/pochmann-sociedade-que-deu-origem-ao-pt-nao-existe-mais-estamos-com-um-retorica-envelhecida/
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