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8.13.2021

As pessoas que erram e a moral religiosa

Implicações psicossociais da teologia moral

“Isso ocorre em menor es­cala, mas na mesma pro­porção dis­cri­mi­na­tória, entre os mem­bros de uma fa­mília ou de um grupo es­pe­cí­fico que ava­liam o com­por­ta­mento de seus in­te­grantes se­gundo o mo­delo ide­o­lo­gi­ca­mente pa­dro­ni­zado ado­tado”, fr Betto

por Frei Betto no Correio da Cidadania – Sociedade e Ser Humano Amoral ?


A con­cepção de pe­cado atre­lada a uma visão in­di­vi­du­a­lista, aliada a um mo­ra­lismo de­sen­car­nado e a uma ca­suís­tica po­li­ci­a­lesca, foi ob­jeto da mais se­vera re­pulsa de Jesus. Os es­cribas e fa­ri­seus pa­gavam re­li­gi­o­sa­mente os im­postos pre­vistos. Não to­cavam nos ob­jetos con­si­de­rados im­puros. Pres­cre­viam a pena de morte para a mu­lher adúl­tera. No en­tanto, trans­gre­diam os pontos mais im­por­tantes da lei: a jus­tiça, a mi­se­ri­córdia e a fi­de­li­dade (Ma­teus 23, 23).

Por sua ati­tude amo­rosa, Jesus de­sa­fiava todos os falsos mo­ra­lismos. Para os ju­deus, a mu­lher era um ser in­fe­rior ao homem, os sa­ma­ri­tanos eram tidos como he­reges e as pros­ti­tutas, ape­dre­jadas em pú­blico. Mas, à beira do poço de Jacó, Jesus se abriu em longa con­versa com uma mu­lher sa­ma­ri­tana que já havia vi­vido com cinco ma­ridos! (João 4, 1 42).

Na ten­ta­tiva de fugir a essa ca­suís­tica que, por tanto tempo, per­turbou mentes de­li­cadas e es­cru­pu­losas, os tra­tados de moral pas­saram a abordar a questão do pe­cado se­gundo a con­cepção co­nhe­cida por "ética de si­tu­ação". Os atos da pessoa deixam de ser to­mados iso­la­da­mente. Con­si­dera se agora o con­texto em que ela vive, sua his­tória pes­soal, os fa­tores que a in­du­ziram a fazer isto ou aquilo, as con­sequên­cias para si e para os ou­tros.

Um mesmo ato pode ser pra­ti­cado por di­fe­rentes pes­soas sem que, ne­ces­sa­ri­a­mente, tenha o mesmo peso moral. Não se parte do ato em si, como se ob­je­ti­va­mente ele fosse "bom" ou "mau", mas da si­tu­ação con­creta em que a pessoa foi le­vada a pra­ticá lo.

Nos úl­timos anos, a psi­co­logia e as de­mais ci­Ãªn­cias que tratam da mente e do es­pí­rito hu­manos pas­saram a ter in­fluência de­ci­siva na noção de pe­cado. Po­demos con­si­derá lo como um ato livre e cons­ci­ente, pra­ti­cado por uma pessoa res­pon­sável, em ofensa a Deus e ao pró­ximo. Ou mesmo à na­tu­reza.

Mas, quem é essa pessoa? A li­ber­dade não é algo que a pessoa con­quista ao com­pletar 7, 14 ou 21 anos. Ne­nhuma idade, nem a da razão, de­ter­mina o mo­mento a partir do qual a pessoa se torna um ser ple­na­mente res­pon­sável por todos os seus atos. A vida é um apren­di­zado de li­ber­dade. É sempre ina­ca­bado, pois a pessoa vive também presa aos me­ca­nismos de seu in­cons­ci­ente, aos fa­tores bi­o­ge­né­ticos de seu de­sen­vol­vi­mento, aos de­ter­mi­nismos fi­si­o­ló­gicos, psi­co­ló­gicos e so­ciais, dos quais nem tem cons­ci­Ãªncia, porém moldam a sua ma­neira de pensar e viver.

As ci­Ãªn­cias que têm por ob­jeto a psique hu­mana vi­eram em so­corro da te­o­logia moral apontar, lá no fundo do nosso in­cons­ci­ente, a com­ple­xi­dade do ser hu­mano. Essa com­ple­xi­dade não pode, con­tudo, ser jus­ti­fi­cada, em úl­tima ins­tância, por fa­tores me­ra­mente psi­co­ló­gicos.

Ex­pe­ri­Ãªn­cias re­a­li­zadas em hos­pi­tais psi­quiá­tricos re­velam que muitos de­se­qui­lí­brios bi­op­sí­quicos têm sua origem nos de­se­qui­lí­brios da pró­pria ordem so­cial. Quando um sis­tema so­cial de­ter­mina a dis­cri­mi­nação entre os seus mem­bros, fun­dada no an­ta­go­nismo entre as classes, cria se um con­senso para o qual não faltam "bases ci­en­tí­ficas" de que certos ele­mentos são ir­re­me­di­a­vel­mente de­sa­jus­tados e ir­re­cu­pe­rá­veis: os cri­mi­nosos, os psi­co­patas, os ho­mos­se­xuais, os es­qui­zo­frê­nicos, as pros­ti­tutas, os neu­ró­ticos, os agres­sivos, os de­pres­sivos, enfim, todo o con­junto de "loucos" con­de­nados a viver mar­gi­na­li­zados e des­pre­zados.

Isso ocorre em menor es­cala, mas na mesma pro­porção dis­cri­mi­na­tória, entre os mem­bros de uma fa­mília ou de um grupo es­pe­cí­fico que ava­liam o com­por­ta­mento de seus in­te­grantes se­gundo o mo­delo ide­o­lo­gi­ca­mente pa­dro­ni­zado ado­tado. Qual­quer um que não se en­quadre nesse mo­delo corre o risco de ser obri­gado a su­portá-lo ao preço de graves con­flitos in­ternos e de tornar se sus­peito de, no mí­nimo, estar do­ente.

Assim, será con­vi­dado a sub­meter se a um tra­ta­mento para curar se de seus "de­se­qui­lí­brios" e de suas "neu­roses", a fim de re­a­daptar se ao mo­delo que dita as re­gras de con­vívio e re­la­ci­o­na­mento entre os de­mais.

Mas para Jesus essa gente “di­fe­rente” são os fi­lhos e fi­lhas pre­fe­ridos de Deus. E devem ser amados assim como são amados por Deus.

Publicado no Correio da Cidadania: 06/08/2021

Fonte:  https://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/14723-implicacoes-psicossociais-da-teologia-moral

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